O enredo prisional em Angola: soberanias duais na disciplina do corpo colonial Teresa Furtado

129 Pages·2014·0.92 MB·Portuguese

O enredo prisional em Angola:
soberanias duais na disciplina do corpo colonial

Teresa Furtado Peixoto Magalhães

Dissertação de Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais
Área de Especializaçã o em Ciência Política

O enredo prisional em Angola:
soberanias duais na disciplina do corpo colonial.

Teresa Furtado Peixoto Magalhães
Novembro, 2014
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à
obtenção do grau de Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais
Área de Especialização em Ciência Política, realizada sob a orientação
científica de Diogo Ramada Curto e Rui Branco.

i
A todos que pela ausência estimulam em mim o perfeccionismo:
a si, Avô Jaime, a quem teria todo o gosto de ler em voz alta cada palavra deste trabalho,
e a si, pai

ii
Agradecimentos

Ao Professor Doutor Diogo Ramada Curto e ao Professor Doutor Rui Branco, pela
persistência que demonstraram no decorrer da elaboração desta dissertação e,
principalmente, pelo apreço e sobriedade premente com que lidaram com as minhas
incertezas, o meu respeitoso obrigada.
Ao Eduardo Pereira Correia e à Raquel Duque por terem apoiado os meus
primeiros passos no campo da investigação e por em mim terem depositado a confiança
de integrar alguns dos seus projetos, com os quais não poderia ter aprendido mais. Acima
de tudo isto, o meu sentido obrigado deve-se à amizade e consideração que foi sendo
consolidada ao longo destes anos.
À minha mãe, para a qual a palavra “obrigada” nunca será suficiente, pela
confiança cega em mim e nas minhas ambições, por ter tornado possível não só este
trabalho como a pessoa que sou, por em cada conversa rápida ao telefone me ter dado
mais palavras de motivação do que perguntas vazias. Mas, fundamentalmente, por me ter
mostrado desde cedo que a responsabilidade pelo meu futuro cabe unicamente a mim, o
que muitas vezes é um peso mas também uma indiscutível base de maturação. À Marta,
à Filipa e à Ana sem as quais metade das melhores recordações da minha vida não seriam
possíveis, por serem desde sempre “as minhas pessoas”, por me lerem com a facilidade
que só as irmãs conseguem e por me tornarem mais leve na partilha da dor da saudade e
da responsabilidade acrescida de não desiludirmos os nossos. A esta casa de
mulherzinhas, a quem tudo devo, o maior e mais literal obrigado.
À Joana Leite Castro, minha queridíssima amiga, pela fidelidade e
comprometimento com que encara o papel de amiga. Pelos tempos em Chicago, pelas
conversas de Skype, pelos jantares entre viagens e pelo incondicional apoio. Acima de
tudo, por nunca se ter permitido acreditar que rumos diferentes e cidades diferentes
enfraquecem as amizades, por continuar tão perto como nos tempos em que ambas
vivíamos na nossa querida Foz. À Margarida Rocha, à Rita Carvalho e à Inês Fernandes
pelos tempos de faculdade e por tornarem, como ninguém, Lisboa mais “casa”, obrigada.
iii
O trabalho de investigação coage a um parcial isolamento e testa, muitas vezes,
o limite das nossas habilidades sociais. A elaboração desta dissertação constituiu um
enorme desafio pessoal não só por testar a validade académica de um trabalho autónomo
mas por me ter encaminhado ao trabalho arquivístico, essa imensidão de documentação
cuja leitura analítica impõe uma restruturação da metodologia individual de trabalho.
Assim, o meu último agradecimento dirige-se ao Bernardo Pinto da Cruz a quem devo
não só o título de amigo mas a companhia de todos os dias, sem o qual não consigo
conceber possível esta cruzada entre bibliotecas e arquivos nem tão pouco o resultado
final que aqui se apresenta. Pelas discussões, pelos conselhos, pela motivação e
encorajamento, pela amizade e pela crítica, muitíssimo obrigado. Não serão muitas as
amizades capazes de experienciar tão transversal conhecimento um sobre o outro, esta é
indubitavelmente uma delas, o que me orgulha e me torna muitíssimo grata a ti.
A todos os aqui mencionados mas também aos tantos e valiosíssimos amigos e
familiares que, pela importância, tornariam esta lista de agradecimentos infindável, muito
obrigada.

iv
Resumo

O enredo prisional em Angola:
soberanias duais na disciplina do corpo colonial

A análise das estruturas de aprisionamento necessita de atender ao quadro institucional
no qual se encontra enquadrado. A compreensão das finalidades às quais reporta apenas
pode ser captada na alusão a um quadro teórico e conceptual que não se cinja à apreensão
restrita das suas mais evidentes manifestações. O enredo da Angola colonial, no qual nos
focamos, imprime a necessidade de nos afastarmos dos recorrentes estudos que tendem a
evidenciar a brutalidade da prática repressiva no interior das prisões, menosprezando, por
iminência, uma análise que capte as características longitudinais que ditam as estruturas
administrativas das suas bases materiais. Assente na defesa de um alargamento
conceptual das práticas de confinamento, pretende esta investigação contribuir para os
estudos que atendem à necessidade destes estabelecimentos serem analisados à luz de
outras instâncias, nomeadamente o trabalho forçado e o incipiente poder infraestrutural
do estado colonial. De forma a alcançar tal propósito esta dissertação concebe uma análise
que contrapõe às finalidades impressas nos códigos legais dos estatutos criminais
coloniais os relatórios arquivísticos. Estes dão conta da prática que regia o modus
operandi destes estabelecimentos e atestam a debilidade morfológica do poder estatal
colonial. É face a tal que se apresenta, numa última análise, as instâncias que nos
permitem pensar o enredo edificado pelas empresas concessionárias no território colonial
numa relação de analogia com a prisão colonial. Tal comparação é aqui edificada pelo
recurso ao estudo de caso da Companhia de Diamantes de Angola, problematizando-se o
modo como esta empresa substituía o poder do estado colonial ao implementar políticas
públicas de gestão e controlo das massas trabalhadoras que se encontravam sob a sua
alçada.

Palavras-chave: Prisões Coloniais, Poder infraestrutural do estado, racionalidade estatal,
trabalho forçado, empresas concessionárias, Diamang
v
Abstract

Colonial Prisons in Angola:
Double sovereignties in the disciplining of the colonial body

In order to analyze the practice of imprisonment one needs to understand its institutional
framework. Here we deploy a theoretical and conceptual set which goes beyond the most
apparent manifestations of imprisonment rationalities. Our focus in colonial Angola
implies that we must turn away from recurrent studies that overemphasize the brutality of
carcerary practices and apprehend the changing characteristics which structure the
material basis of the government of prisons. This study contributes to the arguments that
posit the necessity of a prisons analysis from the viewpoint of other practices such as
forced labor and the fragility of state´s infrastructural power. To do so, this thesis
conceives a general analysis that compares the rationality of criminal law by the reading
of Criminal Reports of the colonial administration. These illustrate the actual practices
ruling the penal system, one that testifies to the lack of a reasonable statism following
from which we can think of an analogy between prisons and some particular colonial
corporations at work in the colonial setting. We undertake a case study of Dimang, a
concessionary corporation, exercising a power analogous to that of a State disciplining
the work force and implementing public policies aimed at controlling and reproducing it.

Keywords: Colonial Prisons, State infrastructural power, Sate rationality, force labor,
Concessionaire corporations, Diamang.
vi
Acrónimos

AHD – Arquivo Histórico Diplomático
AHU – Arquivos Histórico Ultramarino
AOS – Arquivo Oliveira Salazar
DL – Decreto-Lei
GGA – Governador-geral de Angola
GNP – Gabinete dos Negócios Políticos
MU – Ministério do Ultramar
PIDE – Polícia Internacional de Defesa do Estado
TT – Torre do Tombo

vii
«Within the modern world which has come into being, changes have taken
place as the effect of dominant political power by which new possibilities are
constructed and old ones destroyed. The changes do not reflect a simple
expansion of the range of individual choice, but the creation of conditions in
which only new (i.e., modern) choices can be made. The reason for this is that
the changes involve the re-formation of subjectivities and the re-organization
of social space in which subjects act and are acted upon. The modern state –
imperial, colonial, post-colonial – has been crucial to these processes of
constructions/ destruction»

(Talal Asad, “Conscripts of Western Civilization”)

«Critical features of imperial formations include harbouring and building on
territorial ambiguity, redefining legal categories of belonging and quasi-
membership, and shifting the geographic and demographic zones of partially
suspended rights [...] The legal and political fuzziness of dependencies,
trusteeships, protectorates, and unincorporated territories were all part of the
deep grammar of partially restricted rights in the nineteenth and twentieth
century imperial world [...] Imperial states by definition operate as states of
exception that vigilantly produce exceptions to their principles and exceptions
to their laws.»
(Ann Stoler, “On Degrees of Imperial Sovereignty”)

viii
Índice
Introdução 1
- Estado Moderno, Prisão e o Colonial 3
Capítulo I: Dos Códigos Legais às Categorias Administrativas 15
I.1. Edificação da conceção legal de Indígena 16
I.2. Políticas do Corpo no Corpo da Lei 26
I.3. Primeira súmula: denominar, segregar e legislar 33
Capítulo II: Dos Códigos Penais à (in)disciplina prisional 42
II.1. O aparatos legal: a prisão disciplinar 46
II.2. A prisão como espelho da morfologia do poder colonial 52
II.3 Segunda súmula: do poder infra-estrutural do Estado à administração
65
do enredo prisional
Capítulo III: Da Soberania Estatal à Dupla Subjugação do Indígena 72
III.1. O encadeamento contratual da dupla subjugação 74
III.2. Notas quanto ao processo de biologização da Diamang 80
III.3. Terceira súmula: o sector privado enquanto analogia do enredo 89
prisional
Súmula Final: premissas conclusivas e levantamento de questões 99
Bibliografia 111
ix