Table Of Contentcornelius castoriadis
cornelius castoriadis
Nascido em 1922. Estudos de direito,
daniel cobnbencãt
economia e filosofia em Atenas. Sob a
ocupação, organiza um grupo que se opõe
à politica chauvinista do PCgrego, depois
adere à organização trotskista animada por
Spiros Stinas. Chega à França em 1945e
funda no PC, com Claude Lefort, uma
tendência que rompe com o trotskismo em
1948e se transforma no grupo "Socialismo ou
Barbárie". Em junho de 1968, publicou, com
E. Morin e C. Lefort, Maio de 1968: a Brecha
(Fayard). A Instituição Imaginária da
Sociedade (1975) e os Corredores do Labirinto ~Ecolo~ia
(1978) foram publicados pela edltoraSeull.
daniel cohn·bendit
.!!l
Nascido em 4 de abril de 1945em Montauban, '0
Tarn-e-Garone, filho de judeus-alemães O
r. "
emigrados em terra de asilo, mas ele próprio
,'j I
expulso em 1968 após sua participação • j ~. pf
decisiva no movimento de maio, acusado
1
de perturbações da ordem pública. .
.
Reintegrado ao patrimônio nacional em
,
dezembro de 1978, escolheu livremente ,
continuar vivendo na Alemar1ha Federal. J
Autor de numerosas obras, ator em inúmeras
o
manifestações, persiste no mau caminho.
o
I
Copyright@f:dictionsduSeui!, 1981
•
Tradução:
LuizRobertoSalinasFortes
Capa:
Jacob Levitinas ,
Revisão:
NewtonT.L. Sodré PREFÁCIO
JoséE. Andrade
Q texto que vai ser lido éa transcrição das fitasgrava
das flor ocasião de um debate verificado a 27de fevereiro
de(1980):m Louvain-a-Nova (Bélgica). A iniciativa da
organização deste debate e o trabalho de sua preparação
foram assumidos por um grupo de pessoas de horizontes
bastante diversos. Asexposiçõesintrodutóriasao tema de
,
discussão (LUla antinuclear, ecologiaepolítica)estiveram
• a cargo de Cornelius Castoriadis e Daniel Cohn-Bendit.
A participação no debate (oitocentas pessoas aproxima
damente) ultrapassou consideravelmenteas previsõeseas
esperanças dos organizadores.
Q material que entregamos 00 público hoje é, por si
mesmo, amplamente representativo dos pressupostos
comuns, mas também das interrogações e das dúvidas
partilhadas pelos participantes do debate. Parece-nos
Bibiiote'.:8 Dap . todavia útiltentarcercaraqui a problemáticaque amadu
de Fi'osdia recia em nossos espíritos há algum tempo e cujos princi
/ê130 - pais eixos foram revelados gradualmente por ocasião das .
w
D~Ió;J1f~. IO /iL numerosas reuniões preliminares ao debate público. Foi,
com efeito, por referência a esta problemática que foram
postos os termos da discussão entre os participantes do
debate e aqueles que estavam encarregados de intro
duzi-lo.
No ponto de partida da reunião de Louvain-a-Nova
havia o esforço visando elucidar provisoriamente - mes
mo que, no limite,apenas colocando-asclaramente- um
certo número de questões que surgiram durante as reu-
editora brasiliense s.a.
01042 - rua barão de itapetininga,93
são paulo - brasil
6 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIA AAUTONOMIA 7·
niões preparatórias. Estas questões giram em torno dos isso mesmo, a uma pura e simples operação de substi
temasjá clássicos,abordados peloconjunto das correntes tuição. Era preciso evitar a tentação de desempenhar o
que levantam a bandeira da ecologia ("natureza e socie papel deconselheirosdo movimento ecológicoolhando-o
dade", "ciênciae tecnologia", "ciênciae sociedade" etc.). do alto e do exterior e, ao mesmo tempo, recusar-sea se
.Em vários casos, as respostas fornecidas a estas questões deixar encerrar na armadilha da "verdade militante".Era
por diversas correntes ecológicas suscitavam em nós esta uma das condições essenciais para que o debate
graves interrogações. Assim, por exemplo, a escolha da pudesse atingir seus objetivos. Mas, como se sabe, não
A~ pesquis~ de uma tecnologia para a produção de energia basta enunciar os perigos para deles nos preservarmos...
) como eIXO central do discurso ecológico apareceu-nos O desenrolar do debate e os conteúdos das interven-
(.' {como um pr?c~di?1ento atribuindo à técnicaenquantotal c. ções provam que é possíveldiscutir sobre a luta antinu-
I
um papel privilegiado, levando a defini-lacomo o deter clear,aecolo!?iaea polí!icasemqueodesenvolvÍ1:nentode
..1 ,
uma tecnologia alternativa torne-se ocentro dadiscussão.
minante central, senão exclusivo,do funcionamento eda
I
instituição da sociedade. Isto já constitui uma crítica implícita da idéia ingênua e
errônea de que uma técnica alternativa, por sua própria
Oaparecimento deinterrogações tão pesadas etão fun
dinâmica, bastaria para desembocar na destruição da
damentais conduzia à idéia de que o debate deveria pôr
sociedade atual e na construção de uma sociedade radi
em relação as posições adotadas pelas correntes ecoló
calmente diferente. Na mesma medida em que é falso
gicase as que foram reveladaspor outros movimentos e
considerar a técnica como um meioinerte,utilizávelpara
outras revoltas. Pareceu-nos que estas questões deviam
qualquer fim, também é falso acreditar que a técnica
serdebatida no interior deum espaço maisvasto doqueo
sozinha é suficienteparadeterminar uma sociedadeeque
das habituais discussões entre ecologistas partilhando os
basta modificá-laparafazersurgirumasociedadenova.A
mesmos pontos de vista.Era preciso,pois,reunir emuma
existência de sociedades diferentes utilizando técnicas
mesma discussão indivíduos portadores de aspirações e
semelhantes está aí para provar o contrário. Assimtam
interrogações diferentes, embora não necessariamente
bém, o lugar desmedido que a técnica ocupa na socie
contraditórias ou incompatíveis: ecologistas militantes
dade contemporânea não constitui, emabsoluto, no final
assimcomo ecologistasnão organizados, indivíduosfilia
das contas, um problema técnico.
dos a correntes políticas ou a movimentos sociais,todos
Se foi possívelevitar que a questão da técnica alterna
refletindo à sua maneira diferentes aspectos da revolta
tiva ocupasse o centro do debate, foi pelo fato de que o
co~tra a sociedade contemporânea. Assim, a ecologia
movimento antinucleareecológicoétambémportadorde
sena posta em relação com o problema político, ea
t um outro tipo de problemática. Em primeiro lugar, com
própria política com as tentativas dos indivíduos e dos
efeito,este movimento torna manifestademaneira crítica
grupos de prefigurar uma nova instituição da sociedade
I a massiva produção de irracionalidades em nossassocie
conforme suas aspirações e seusdesejos.
dades. O temor, a angústia diante do acidente ou da alte
.Era preciso ao mesmo tempo e principalmente evitar
ração/desaparecimento das formas de vida naturais
cal.r 1?-a armadilha da crítica paternalista que sedá como
manifestam a pouca credibilidade das operações mistifi-
objetivo esclarecer os atores diretos e se entrega, por
~
8/ o
CORNELlUSCASTORIADIS/DANIELCOHN-BENDIT DA ECOlOGIAAAUTONOMIA 9
~I
j;~:
cadoras a que seentregam asinstituições burocráticasque outros relativamente à sociedade futura. O reconheci
~A" tiram sua legitimidade de um saber pretensamente racio- mentodo valoreda especificidade desta luta exclui asati
o~r; naleeficaz.Ao mesmo tempo, o movimentoantinucleare tudes paternalistas e as manobras táticas de utilizaçãodo
ecológico coloca, por sua vez, aprofundando-o, o movimento ecológico. Contribui também para estabe
problema da crise do modo de vida, que já havia sido lecer uma barreira diante das extrapolações e das mira
revelado pelo abalo da família tradicional, a luta das gens ideológicas que os grupos minoritários, cada qual
mulheres ea rebelião da juventude. Éatravésdessas lutas considerando-se como detentor exclusivo da verdade,
que aparece o mais claramente possível a contestação de propõem como solução única dos problemas da socie
uma certa maneira de viver, de um certo ritmo de vida dade.
urbana, de uma estética duvidosa, do gigantismo real e Isto posto, éevidente que a lutaantinucleareecológica
simbólico, das instituições sociais,econômicase políticas, não esgota o problema político tal como o entendemos.
ao mesmo tempo em que vêm à luz do dia atividades e Proposto desde a aurora dos tempos modernos, estepro
práticas criadoras. Em seguida e principalmente, o movi blema, para nós, mantém-se aberto por inumeráveis lutas
mento antinuclear e ecológico exprime à sua maneira o e movimentos, certamente parciais e desconunuos, mas
ponto de vista da autonomia, o desejo sempre presente, cujo ponto de vista parece-nos essencialmente coerente:
mesmo quando não majoritário, de uma auto-instituição projeto de constituição de umasociedadeigualitária, onde
da sociedade. Finalmente, a ecologia faz renascer a rela acoletividadedetém efetivamenteopodereespecialmente
ção, esquecida eescondida, da sociedadecom a utopia -'--- o de instituir a leino sentido mais geral do termo; projeto
'J"L utopia compreendida como desejo de mudança e hori- de definição coletiva dos limites de nossas necessidades e
\lJ.ff' zonte dênossa atividade, sem que se prejulgue a respeito dosmeios de,sua satisfação; projeto de uma sociedade
da possibilidadede materializaçãoefetiva desta mudança. justa, a justiça não sendo concebida como acordo com
Ampliar nestes termos a problemática, assim como uma leidada uma vezportodas, mas como a busca cons
constatar o alcance limitado da questão de uma técnica tante da melhor relação entre osindivíduos, osgruposea
alternativa, não conduz de forma algumaao menosprezo .coletividade.
da importância da luta antinuclear enquanto luta espe Nesta ótica, convém sublinhar a afirmação feita no
cífica. O combate contra a poluição e a contaminação curso do debate de que uma sociedade ecológica profun
torna-se urgente efundamental parasetores crescentes da nJ damente autoritária éperfeitamente concebível. Esta pos
v('i.-~
população, uma vezque se trata, para cada indivíduo, de sibilidade seenraíza, entre outras, na relação equívocaque
.r
sua segurança, de sua sobrevivência, da salvaguarda do o movimentoecológico eantinuclear mantémcom ainsti
meio natural que o circunda. tuição social da ciência. Com efeito, freqüentemente os
Isso significaque nós nos alistamos contra aqueles que, perigos são denunciados eassoluções avançadasna basee
a partirdeconsideraçõesde estratégias ou de tática"revo em nomede um saberque não está inscrito na vida quoti
lucionária", contestam o bom fundamento da luta ecoló diana epermanece estranho àqueles que combatem. Oca
gica. A necessidade de leisantipoluiçãoéimediataeinde minho a seguir éporvezesindicado em nomeda pretensa
pendente dos pontos de vista e das exigências de uns e neutralidade de um saber racional, universal, válido para
,
J
10 CORNELlUSCASTORIADIS/DANIELCOHN-BENDIT
toda a sociedade. Em suma, a fOffila contemporânea da
instituição social da ciência corre o risco de semanifestar
uma vez mais graças à atividade de um grupo deespecia
listas formulando a velha reivindicação autoritária de
uma política fundada sobre a ciência e sobre um saber
eficaz, à margem da atividade coletiva, criadora e insti
tuinte, dos homens e das mulheres.
De tudo issoresulta que seafirmamos hojeque a socie
dade que queremos não deverá ser antiecológica, não
podemos fazê-lo a não ser na seqüência do avanço e da
experiência do movimento ecológico. Masesta afirmação
o
épara nós umaexigência que traduza práticadas pessoas presidente da Assembléia geral dos estudantes da
e não um discurso ideológico baseado nas conclusões universidade de Louvain-a-Nova:
daquilo que se chama de ecossistemismo. Temos que nos Agradeço em primeiro lugar a todos por terem vindo
opor à tentação constante de legiferar para os outros em em número tão grande esta noite para esta conferência
seu nome. Devemos reconhecer, no fazer dos homens e debate.
das mulheres, não umaconfirmação de nossasidéias,mas Agora, algumas palavras sobre os organizadores da
a fonte de inovações irredutíveis. conferência. Éem primeiro lugar o grupo Nós, um grupo
Nossa ambição ao publicar a resenhadestedebateéde "grupuscular" de reflexão que não se preocupa em definir
que possa servirdematerialde reflexão naperspectiva das se de maneira mais determinada. Em seguida, o Centro
lutas ulteriores. Mas pensamos também queconstituium Galileu, que é ao mesmo tempo l!I}la livraria e um orga
testemunho e um documento sobre a situação presente. nismo de educação permanente. Há igualmente os
Pois seu interesse não se encontra somente no conteúdo Amigos da Terra do Brabantês Valão, grupoecologista
dos discursos e das idéias avançadas, mas também no que trabalhasobreosaspectos só~i()-:-p()lític()sdonuclear e
estado de espírito expresso pelas intervenções do público. das energias doces. Há também o MJP,Movimento dos
..
O público era, com efeito, composto no essencial por Jovenspela Paz, que tenta promoveraidéiadeumasocie
homens e mulheres que tomam parte ativa neste com dade ªl:ltogestionária. Finalmente, há a AGL,isto é, para
bate. Suas intervenções, suas reações, seus silênciose até os que ainda o ignoravam, a Assembléia geral dos estu
mesmo seus bloqueios estão plenos de significação. dantesde Louvain, órgão derepresentaçãodosestudantes
Traduzem, muito mais do que as exposições introdutó da universidade de Louvain.
rias, a realidade do movimento. Neste sentido podemos Era importante mencionar os organizadores porque o
afirmar que o público de Louvain-a-Nova éo verdadeiro debate desta noiteseinscrevenasatividadesdeumgrupode
criador deste livro. reflexão que quer aprofundaras problemas políticoscolo
eados pelaenergia nuclear e porque estasatividades não se
G.A. e S.Z. limitam à organização deste debate. Para dar uma idéia
L
..
12 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIAAAUTONOMIA 13
doseixosde reflexão destegrupo,citoalgunsdosassuntos tões novas que surgem no debate, com a ajuda talvez
que foram abordados até agora: daqueles que foram encarregados de introduzi-lo.
~.A ciência e a economia em face do problema da Hoje todo mundo sabe, todo mundo acredita saber
e?ergm nuclear, principalmente em seus aspectos socioló não era o caso ainda há poucotempo ~.quea ciênciaea
gICOS. técnica estão muito essencialmente inseridas, inscritas,
~A lutaantinuclearéverdadeiramenteumacolocação enraizadas em uma instituição dada da sociedade. Da
em questão da sociedade? mesma forma que a ciência ea técnicada época contem
~ Podemos definir uma opçãopolíticaa partir da luta porânea nada têm de trans-históricas, não têm valor que
antinuclear? esteja para além de toda interrogação, que pertencem ao
É porque este grupo de reflexão quer prolongar suas contrário a estainstituição social-histórica que éo capita
~ti.vidadesque lanço a todos um convite para delas par lismo tal como nasceu no Ocidente há alguns séculos.
ticipar. Eis aí uma verdade geral. Sabe-se que cada sociedade
Quanto à razão de ser destaconferência, recusamo-nos criasuatécnicae seu tipode saber, comotambémseu tipo
a dar um outro motivo além do seguinte: tínhamos real de transmissão do saber. Sabe-se também que a sociedade
mente o desejo de organizar uma conferência. Eu agra capitalista não somente foi muito longe na criação e no
deço e desejo a todos uma boa noitada (aplausos). desenvolvimento de um tipo de saber e de um tipo de
tecnologiaque a diferenciade todas as outras, mas que~
Corne/ius Castoriadis:Estou contente porestaraquiepor e isso também a diferencia das outras sociedades ~além
vê-los. E estou muito surpreso pelo número de partici disso colocou estas atividades no centro da vida social e
pantes; muito agradavelmente surpreso e feliz. Mas ao atribuiu-lhes uma importância que não tiveram nem
mesmo tempo issoaumenta meu medodedecepcioná-los, outrora nem alhures.
tant~~aisporque,falandocomDanyantesdeviraqui,ele Assim também, todo mundo sabe ou todo mundo
me dizia que não sabia o quediria, que improvisaria. Mas acredita saber que a,-pretensa neutralidade, a pretensa
el~ tem. o hábito disto e sabemos, historicamente, que se instrumentalidade datécnica eaté mesmo do sabercientí
sal muito bem (risos). Quanto a mim, teria gostado de fico são ilusões. Em verdade, até mesmo esta expressãoé
consagrar mais tempo do que me foi possível fazê-lo na insuficiente e mascarao essencialda questão. Poisa apre
preparação daquilo que pretendo dizer. sentação da ciência e da técnica como meios neutros ou
Mas talvez, no final das contas, isso não teriafeito dife como puros esimples instrumentosnãoésimples"ilusão":
rença,pois as quatro ou cinco coisas que tenho a dizer, ela faz parte, precisamente, da instituiçãocontemporânea
v0<;ês verão, desembocam em pontos de interrogação e da sociedade isto é, faz parte do imaginário social
,-C----
tenam desembocado em pontos de interrogação de dominante de nossa época.
qualquer maneira. Eacreditoque osentidode umanoite co Podemos circunscrever este imaginário social domi
mo esta éprecisamentefazeras pessoasfalarem: fazervo nanteem umafrase: o pontode vista centraldavidasocial
cê~falaremsejasobrequestõesquejáestãoabertasporvocês, é a expansão ilimitada da mestria (mditrise) racional. É
seja ~ e este seria um ganho considerável ~- sobre ques- claro que quando olhamos de perto - e não énecessário
- '--F-
14 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDIT DA ECOLOGIAAAUTONOMIA 15
chegar muito perto para vê-lo - esta mestria é uma transforma toda a instituição da sociedadeepenetra cada
pseudomestria e esta racionalidade, uma pseudo-racio 'I vez mais no interior de todas as atividades.
nalidade. O que não impede que seja este o núcleo de Mas vocês sabem também que, apesar de suas preten
significações imaginárias sociais que mantêm unida a sões, esta instituição da sociedade é dilacerada por uma
sociedade contemporânea. E isso não é somente o caso multidão de contradições internas, que sua história está
nos países de capitalismo dito privado ou ocidental. É atravessada por conflitos sociais importantes. A nossos
igualmente o caso nos paísespretensamente "socialistas", olhos, estes conflitos exprimem essencialmente o fato de
nos países do Leste, onde os mesmos instrumentos, as que a sociedade contemporânea está dividida assimétrica
mesmas fábricas, os mesmos procedimentos de organi e antagonicamente entre dominantes e dominados e que
zação e de saber são postos igualmente a serviço desta esta divisãosetraduz, especialmente, pelosfatosdaexplo
mesma significação imaginária social, a saber, a expan ração e da opressão. Deste ponto de vista, deveríamos
são ilimitada de uma pretensa mestria pretensamente dizer que de direito a imensa maioria das pessoas que
racional. vivemna sociedade atual deveria opor-seà forma estabe
lecida da instituição da sociedade. Mas também é difícil
Abrirei aqui um parêntese, pois não podemos, afinal,
acreditar que, caso isso se desse, poderia esta sociedade
discutir abstraindo aquilo que está se passando na atua
manter-se durante muito tempo ou até mesmo teria
lidade mundial e que é muito grave. Vemos muito mais
podido manter-se até hoje. Há, pois, uma questão muito
claramente hoje, com o Afeganistão- eu diria, mais
importante que se coloca: como esta sociedade consegue
exatamente: as pessoas podem ver; quanto a mim, pre
manter-se e permanecer como um todo quando "deveria"
tendo que já faz trinta e cinco anos que o vejo-, que a
suscitar a oposição da grande maioria de seus membros?
coexistência e o antagonismo destes dois subsistemas,
Há uma resposta que devemos eliminar definitiva
cada um pretendendo possuir o monopólio da via pela
mente de nossos espíritos e que caracteriza toda a velha
qual chegaremos à "mestria racional" do todo, estão em
mentalidade de esquerda: a idéia de que o sistema esta
vias de tocar o ponto onde há o risco de haver efetiva
belecido só se manteria graças à repressão e à manipu
mente um domínio totalmente racional do único verda
lação das pessoas, em um sentido exterior esuperficialdo
deiro mestre e senhor, como diria Hegel,isto é, a morte.
termo manipulação.
Vocês sabem que a dominação deste imaginário Esta idéiaétotalmente falsae,oqueéaindamaisgrave,
I começa primeiramente mediante a forma da expansão ela é perniciosa porque mascara a profundidade do
ilimitada das forças produtivas - da "riqueza", do problema sociale político. Sequeremosverdadeiramente
i
"capital". Esta expansão toma-se rapidamenteextensão e lutar contra o sistema etambém se queremos ver os pro
desenvolvimento do saber necessário para o aumento da blemas contra os quais se choca hoje, por exemplo, um
produção, isto é, da tecnologia eda ciência.Enfim, aten movimento como o movimento ecológico, devemos
dência no sentido da reorganização e da reconstrução
compreender uma verdade elementarque parecerá muito
"racionais" de todas as esferas da vida social - a pro desagradável a alguns: o sistema se mantém porque con
dução, a administração, a educação, a cultura, etc...
segue criara adesão daspessoas àquilo que é. Consegue
-------------
"",,.,.,,,,
\
DA ECOLOGIAAAUTONOMIA 17
16 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIELCOHN-BENDIT
sociedade contemporânea e a comparamos àquelasque a
criar, bem ou mal,para a maioriadas pessoas edurante a
precederam, constatamos uma diferença importante: hoje,
grande maioria dos momentos de suavida, suaadesão ao
a autoridade se apresenta como dessacralizada, não há
modo de vida efetivo, instituído, concreto desta socie
mais reis pela graça de Deus.
dade. É desta constatação fundamental que devemos
partir se quisermos ter uma atividade que não seja fútil e
Daniel Cohn-Bendit: Você está na Bélgica.
vã.
Esta adesão é certamente contraditória: vaijunto com
Cornelius Castoriadis: Não esqueçoqueestouna Bélgica.
momentós de revolta contra o sistema. Mas é, apesar de
Mas não acredito que o rei dos Belgas seja considerado
tudo, urnaadesão ~ !}EO é uma sJ!!Yplespassividade. Isto
como rei pela graça de Deus. Penso que isto deve ser um
podemos vê-lo facilmente ao nosso redor.E, afinal, se as
princípio do direito constitucional belga eque sehá um rei
pessoas não aderissem efetivamenteaosistematudocairia
dos Belgas é porque o povo belga decidiu soberanamente
por terra nas próximas seis horas. Paratomarapenas um
que haveria um rei ~ não? (Risos.)
exemplo: esta maravilha de "organização" e de "raciona
Pensar-se-ia, pois, que a autoridade hoje estádessacra
lidade" que é a fábrica capitalista - ou, maisgeralmente,
lizada. Mas na realidade não é verdade. O que, outrora,
toda empresa capitalista, tanto a Oestequanto a Leste
sacralizava a autoridade era a religião: como dizia São
não produziria absolutamente nada, mas se desmoro
Paulo na Epístola aos Romanos, "todo poder vem de
naria sob o peso da absurdidadede suaregulamentação e
Deus". Outra coisa tomou hoje o lugar da religião e de
das antinomias internas que caracterizam sua pseudo
Deus: algo que não é, para nós, "sagrado" mas que con
"racionalidade", se os trabalhadores não a fizessem fun
seguiu, bem ou mal, instalar-se socialmente como o equi
cionar ocasionalmente contra esta regulamentação ~ e
valente prático do sagrado, como uma espécie de subs
muito além do que explicariam a coerção ou o efeito dos
tituto da religião, uma religião chã e achatada. E esta é a
"estimulantes materiais".
idéia, a representação, asignificaçãoimagináriadosabere
Esta adesão sedeve a processosextremamentecomple
I da técnica.
xos que não setratade analisaraqui. Pois estes processos
Não quero dizercom isto, éclaro,que aquelesqueexer
constituem o que eu chamo de fabricação socialdo indiví
cem o poder "sabem". Mas pretendemsabereéem nome
duo e dos indivíduos - de nós todos - na e pela socie
deste pretenso saber - saber especializado, científico,
dade capitalista instituída tal como existe.
técnico - que justificam seu poder aos olhos da popu
Eu evocaria simplesmente dois aspectos desta fabri
lação. E se podem fazê-lo é porque a população acredita
cação. Um.dizrespeito à instilação nas pessoas, desde a I
'> mais tenra infância, de uma relação à autoridade, de um nisso, é porque foí preparada para acreditar nisso.
Assim, na França, estamos esmagados por um presi
certo tipo de relação a um certo tipo de autoridade. E
dente da República quese pretendeespecialistadaecono
outro, à instilação nas pessoas de um conjunto de
'j . mia. Este "especialista", quando ainda era ministro das
y';) "necessidades", a cuja "satisfação" estarão atrelados pela
·f' Finanças, pronunciava discursos na Câmara em que
~. vida afora.
alinhava durante três horas estatísticas com quatro cifras
?:f'. Primeiro, a autoridade. Quando consideramos a
..
ü ..
f
18 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIEL COHN-BENDI1 DA ECOLOGIAAAUTONOMIA 19
decimais. Isto quer dizer que ele deveria ter sido rados no sistema social atual, ou mais ainda, que lhesão,
reprovado no primeiro anode uma Faculdadede Econo em um certo sentido, consubstanciais, mesmo assim é
mia, pois uma estatística com quatro cifras decimais em preciso aceitar que há aí criação de alguma coisa que
matéria de preço e de produção não tem estritamente ultrapassa certamente a época contemp-orânea. Isso é
nenhum sentido: no máximo, nestes domínios, podemos verdade também, aliás, paraas épocas anterioresdahistó
falar em dez por cento aproximadamente. Isso não ria. Paratomarum exemplo fácil,oteoremade Pitágoras
impede que o presidente Giscard, que não é economista, foi descoberto e demonstrado há vinte ecincoséculosem
tenha conseguido desenterrar um dinossauro do pretenso Samosounãoseionde,poucoimporta. Éclaroquefoidesco
saber econômico, chamado Raymond Barre (risos e bertoemumcontextodemaneiranenhuma"neutro", forma
aplausos), que elebatizou como"o melhoreconomistada do porumconjuntodeesquemasimaginários indissociávele
França".Graças ao qual o bordel da economiafrancesa é profundamenteligadosàconcepçãogregado mundo,àinsti
agora muito maior do que era há três anos e também do tuição imaginária grega do mundo, como toda a geome
que teria sido se o porteiro do prédio tivesse sido presi tria grega. Isso não impede que, vinte e cinco séculos
dente do Conselho (risos). depois, este teorema de Pitágoras, ou alguma coisa que
Disto, há umaconclusãopráticaa tirar. Há um terreno tem o mesmo nome, não somente continue a "ser verda
de luta, especialmente para pessoas como vocês, como deiro" (podemos proveresta expressãodetodasasaspas e
todos nós aqui que nos ocupamos mais ou menos com pontos de interrogação que quisermos), mas aparece
:'~.atividades intelectuais e científicas. Trata-se de mostrar, como infinitamente mais verdadeiro quanto o próprio
em primeiro lugar, que o poder na época atual não é o Pitágoras era capaz de pensá-lo, uma vez que o enun
saber, que não somente elenão sabetudo, mas mesmoque ciado presente do teorema de Pitágoras, tal como vocês .
sabe muito menos coisas do que sabem as pessoas em poderão encontrá-lo em um tratado contemporâneo de
geral, e que para isto há,razões profundas e orgânicas. E, análise, constitui dele uma imensa generalização. Isso
em segundo lugar, que este "saber" de que se reclama o continua se chamando teorema de Pitágoras, mas se
poder, mesmo quando existe, tem um caráter bem parti enuncia: em todo espaço pré-hilbertiano, o quadrado da
cular, parcial e enviesado desde a base. norma da soma de doisvetores ortogonais éigual à soma
Mas há também uma questão que não quero calar dos quadradosde suas normas. Ou, para tomar um outro
embora não seja uma das questões sobre as quais deve exemplo: não há sociedadepossívelsemaritmética - por
ríamos nos estender nesta noite. É que - esquecendo mais arcaica, primitiva, selvagem que sejaesta sociedade.
agora completamente os senhores Giscard, Barre e con Mas onde sedetém, então, a aritmética? Issotambém faz
sortes - há um verdadeiro problema do saber e mesmo partedaquestão dosaber. Émuitofácilesvaziarestaquestão
da técnica que nos interpela efetivamente enquanto este dizendo, como um recentemicrofarsante parisiense,que o
saber e mesmo esta técnica ultrapassam a instituição totalitarismo são os sábios no poder: o que evidentemente
presente da sociedade. Mesmoseadmitirmos - como eu nãofazmaisdoquedarcréditoe reforçaramistificaçãoideo
ofaço- que a orientação, osfins,omododetransmissão lógica dominante. Como se Stalin, que dirigia as opera
i
e a organização interna do saber científico estão anco- ~ ções do Exército russo durantea segundaguerra mundial
TE
20 CORNELlUS CASTORIADIS/DANIELCOHN-BENDIT DA ECOLOGIA AAUTONOMIA 21
debruçado sobre um mapa-múndi, como revelou
para ele trata-se de uma "necessidade". Não o é para um
Kruchev, fosse um "sábio no poder". Mas é também
indivíduo fabricado pela cultura capitalista: esta peregri
muito fácil esvaziar a questão, como se faz freqüente
nação é uma superstição ou uma fantasia. Mas para este
mente em nosso meio eporpessoasquenos são próximas,
mesmo indivíduo não é superstição ou fantasia, mas
querendo jogar fora a ciência e a t~cnica enquanto.tais
"necessidade" absoluta, ter um carro ou mudarde carro a
porque seriam puros produtos do Sistema estabelecido:
cada três anos ou ter uma televisão a cores desde que
desemboca-se, assim, na eliminação da interrogação a
existem tais televisões.
respeito do mundo, de nós mesmos, de nosso saber.
Em segundo lugar, pois, o capitalismo conseguiu criar
Venho agora à outra dimensão do processo de fabri
uma humanidade para a qual, mais ou menos bem ou
cação social do indivíduo, aquela que diz respeito às mal, estas "necessidades" são aproximadamente tudo o
"necessidades". Evidentemente, não existem "necessida que conta na vida. E, em terceiro lugar - e é um dos
des naturais" do ser humano em nenhuma definição do pontos que nos separam radicalmente de um ponto de
termo "natural" - salvo talvez em uma definição filosó vista como aquele que Marx poderia ter da sociedade
fica em que a "natureza" seria algo completamente dife capitalista -, estas necessidades que cria, o capitalismo,
rente daquilo que vocês pensam habitualmente sob~e este bem-ou-mal-e-na-maior-parte-do-tempo, consegue satis
termo: uma "natureza" segundo Aristóteles ou Spmoza, fazê-las. Como diríamos em inglês: He promises the
algo como uma normaao mesmotempoi~ealereal..Alé~l goods, andhedeliversthegoods.* Aquinquilhariaaíestá,
do fato de que não estamos aqui esta noite para discutir
as lojas estão repletas - ebastavocêtrabalharparapoder
este tipo de questões filosóficas, esta acepção do termo
comprá-la. Basta ser bem-comportado e trabalhar que
"natureza" não nos interessa por uma razão precisa: não
você ganhará mais, subirá, comprarámaisetudobem. Ea
vemos como poderíamos nos colocar de acordo ~ocial
experiência histórica está aí para mostrar que, com
mente para definir necessidades que correspondenam a
algumas exceções, a coisa funciona: a coisa funciona,
esta tal "natureza".
produz, trabalha, compra, consome e volta a funcionar.
Não há necessidades naturais. Toda sociedade criaum
Nesta etapa da discussão, a questão não ésaberse"cri
conjunto de necessidades para seus membros elhesensina
ticamos" este conjunto de necessidades de um ponto de
quea vida nãovalea penaservivida emesmonão p~deser
vista pessoal, de gosto, humano, filosófico, biológico,
materialmente vivida a não ser que estas necessidades I
l médico ou o quequiserem. A questão recai sobreosfatos,
sejam bem ou mal "satisfeitas". Qual éa especificidadedo
sobre os quais não se deve nutrir ilusões. Falando breve
I
capitalismo quanto a isso? Em primeiro lugar, é que o
mente, esta sociedadefunciona porqueaspessoastêm que
capitalismo só conseguiu surgir, manter-se, desenvolver t
ter um carro e, em geral, podem tê-lo e podem comprar
se, estabilizar-se (apesar de e com as intensas lutas operá
gasolina para este carro. Eis por que é precisocomJ?reen
rias que dilaceraram sua história) colocando no centro de
der que uma das coisas que poderiam pôr abaixo o
tudo as necessidades "econômicas". Um muçulmano ou
sistema social no Ocidente não é a "pauperização", abso-
um hindu deixará de lado o dinheiro durante toda sua
vida para fazer a peregrinação a Meca ou a tal templo; (*)Comoemportuguês.apalavraIi(!!!dtememinglêsoduplosentidode-bem"e"rner
cadoria", Atraduçãoliteralseria:"Eleprometeosbenseentrega osbens",(N,doT,)
