Table Of ContentAPOCALIPSE REVISITADO:
O SAGRADO E A
RESISTÊNCIA
DOS EXCLUÍDOS*
Azize Medeiros**
Resumo: o presente trabalho apresenta uma reflexão sobre o
Apocalipse de São João, priorizando a compreensão sobre o significado
das bestas citadas nos versículos 1 e 2 do capítulo 13. Buscou-se esta-
belecer um paralelo com os tempos contemporâneos, principalmente
no que se refere à compreensão da força e da forma, muitas vezes
sútil, da ação da segunda besta. Sendo esta, certamente, a parte mais
essencial e cruel dos sistemas de opressão dos excluídos, pois tenta,
arduamente, fragmentar, reduzir e esvaziar a fé no sagrado que
mantem a resistência dos povos.
Palavras-chave: Besta. Sagrado. Excluídos. Propaganda. Fé.
A visão apocalíptica do autor desse texto bíblico traduz, ainda hoje,
uma leitura instigante sobre a angústia e o sofrimento de um povo
oprimido pelo poder.
A linguagem cifrada se retrata pela necessidade de ser compreendida
apenas pelo povo de Deus, porque sua mensagem só poderia ser clara para
aqueles que vivenciaram a experiência da fé. É evidente a sabedoria reve-
lada nas linhas que perpassam a trajetória histórica de uma comunidade
perseguida, cuja única ameaça ao poder instituído se evidenciava na força
da fidelidade aos seus líderes e na fé ao Deus que se materializou na figura
de seu único Filho.
O Apocalipse refaz a trajetória dos cristãos perseguidos pelo do-
minador romano, numa impiedosa tentativa de frustrar a união que se
caracterizava na figura dos seguidores de Deus, por intermédio de uma
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disseminação fraudulenta de informações divergentes e insidiosas. A tenta-
tiva de descaracterizar a verdadeira fé, mediante o engodo e a falácia sobre a
existência de poderes divinos atribuídos ao imperador romano, como uma
paródia mal elaborada da tradição cristã, moveu as lideranças comunitárias
e, por intermédio da resistência dos cristãos, possibilitou a luta silenciosa
contra a injusta dominação dos povos que nunca se renderam ao poder.
Mesmo sabendo dos perigos que corriam, as lideranças cristãs con-
clamaram seus seguidores a não esmorecer e permanecerem fiéis aos ensina-
mentos de Jesus. A luta desigual e desproporcional travada pelas comunida-
des ante o poderio romano ensejou o assassinato de vários seres humanos,
cujo único crime foi o de não se inclinar aos desmandos e desvarios do
imperador Domiciano em sua insana tentativa de imitar um deus e atribuir
a si mesmo poderes divinos, como representante dos deuses na terra.
BREVE NARRATIVA HISTÓRICA DO IMPERADOR DOMICIANO
O estudo de o Apocalipse, livro bíblico atribuído a um João de mui-
tas vozes, remete o leitor a um mundo de opressão e submissão a um impé-
rio que se dizia poderoso, mas que já ostentava claros sinais de decadência
política e moral. Segundo dados históricos, era o tempo do imperador
romano Domiciano, cujo reinado foi um dos mais longos, cerca de quinze
anos, e considerado um período de terríveis perseguições aos cristãos.
Os versos do Apocalipse ensinam que o Império Romano, temeroso
ao ser descaracterizado em seu poderio por uma força desconhecida, que se
insurgia na figura de um Deus único que se sobrepunha ao panteão mul-
ticultural, esfacelado pela inclusão de vários deuses de diferentes culturas,
era agora contestado por essa divindade una que, a partir do sacrifício de
seu Filho, havia possibilitado a insurreição de um povo submisso, que se
sabia agora unido e fortalecido pela fé.
A sequência de impiedosos tiranos que se sucederam no trono de-
monstra, inequivocamente, a derrocada de uma civilização em franco de-
clínio, subjugada pela própria soberba e fustigada pelos bárbaros em suas
fronteiras. As tiranias de todos os tempos se apoderaram da religião, dos
mitos e símbolos considerados sagrados pelos povos e, em nome dos di-
versos deuses, utilizaram a fé e o medo como prerrogativa de exploração e
opressão das comunidades, com o único intuito de auferir poder.
Está no Apocalipse a prova completa da utilização da religião, dos
temas sagrados de um povo, na tentativa de dominar a credulidade me-
diante a apropriação daquilo que é venerado. No entanto, a perspicácia e
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sensibilidade dos líderes cristãos desses tempos souberam revitalizar a fé,
ao mesmo tempo em que transformaram a resistência das comunidades em
forte oposição ao governo despótico.
Do ponto de vista do poder dominante, era urgente a descaracteri-
zação de tal união em torno da fé, sob pena de o império se ver contestado
por um poder invisível e, portanto, invencível. Um poder que arregimen-
tava novos adeptos a cada dia e, motivados pelo sacrifício de seu Messias,
que havia vencido aos seus algozes e até a própria morte, tendo ressurgido
em pleno vigor, demonstrava que estavam agora protegidos e revigorados
contra qualquer tipo de sujeição.
Era, então, premente que os povos fossem conquistados e que à ti-
rania coubesse corrigir esse erro de entendimento, provando que só existia
um poder sob o céu: aquele atribuído ao imperador romano. É com base
nessa crença que nasce a oposição ao efervescente movimento popular,
cujo intuito é desmantelar a crença e oferecer algo novo a quem o povo
deveria adorar. Domiciano, em sua sede de poder, reaviva a adoração ao
imperador, como rediviva reencarnação daquele que teria sido o maior dos
déspotas romanos: Nero.
Em uma tentativa de se apropriar da visão profética do povo de
Deus, Domiciano propõe que Nero tenha também vencido a morte e re-
tornado na sua própria figura, em uma demonstração de que o imperador
redivivo trazia em si mesmo a força de seus antecessores, bem como a luz
dos deuses invencíveis. Contam os historiadores que Domiciano atribuía
ao deus Júpiter sua força, talvez buscando demonstrar ao povo que seu
poder emanava de um dos deuses mais poderosos que habitavam o imagi-
nário da população de sua época.
O APOCALIPSE EM SUA EXORTAÇÃO ÀS COMUNIDADES
O autor de o Apocalipse não se engana e reconhece que a força
da opressão traria dúvida e medo entre os cristãos. O Império Romano
se apresenta como um poder mundial, que incita ao povo a adoração de
um imperador que adota uma descrição semelhante àquela do Deus dos
cristãos, alguém ungido que detém a força e o poder de vida e de morte,
que se diz divino e portador da unção da força dos deuses. É mediante a
propaganda e o medo que o império tenta subjugar e trazer confusão às
bases de resistência do povo de Deus.
No capítulo 13, versículos 1 e 2, do Apocalipse é feita uma revisão
do poder do império e João demonstra que a propaganda disseminada
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pelo imperador é insidiosa, carregada de impropriedades e, por meio de
linguagem cifrada que tem o alcance de iluminar os seguidores de Cristo,
esclarece a verdadeira natureza daquilo que denominou como “blasfêmia”,
cujo sentido de blasfemar encerra o significado de atribuir títulos divinos
aos assuntos humanos e políticos.
Vi então uma Besta que subia do mar. Tinha dez chifres e sete cabeças; so-
bre os chifres havia dez diademas, e sobre as cabeças um nome blasfemo.
A Besta que vi parecia uma pantera: os pés, contudo, eram como os de urso
e sua boca como a mandíbula de leão. E o Dragão lhe entregou seu poder,
seu trono, e grande autoridade (Ap, 13, 1-2).
Nesses versos João se utiliza de vários símbolos para identificar que
o poder do império é político e não religioso. Afirma que é o “dragão”
– as forças do mal, hostis ao Deus único – que confere poder à “Besta”.
A “besta que sobe do mar” se refere à direção de Roma, às margens do
Mediterrâneo; a besta é o estado tirânico, o poder político que se apresenta
“divinizado”. O dragão tem sete cabeças, que representam as sete colinas
de Roma e, também, os sete imperadores romanos.
Continua João no capítulo 13 a descrever a besta como um ser
que parecia uma pantera, cujo significado remete ao império Persa; os
pés da besta são como os do urso, numa clara identificação com o sím-
bolo do império Medo e, por fim identifica a boca da besta como a
mandíbula de um Leão, símbolo inequívoco do império babilônico1.
Está nessa descrição a desfiguração do monstro criado pelo império: a
força unida das grandes civilizações que o mundo conhecia, reencarna-
das na figura do imperador Domiciano. Além de ostentar a força dos
grandes impérios, trazia ainda em seu trono a potestade divina, a unção
dos deuses.
Na análise feita por Mesters e Orofino, João não é um romântico
nem ingênuo:
De um lado, mostra a força imensa que faz do Império um poder mun-
dial e, de outro lado, revela a sua fraqueza escondida que será a causa
de sua derrota e que oferece uma dica para a atuação das comunidades.
[...] Reconhece a força tremenda do adversário. Ao mesmo tempo, revela
e comunica uma consciência crítica muito viva. Não se deixa enganar
pela grandeza e pela força, nem pela moda do momento. Ele aponta os
pontos frágeis deste poder mundial que só consegue sobreviver através da
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injustiça, opressão e exploração, usando o medo e a propagando (MES-
TERS; OROFINO, 2008, p. 263).
A “moda do momento”, a que se referem os autores citados na re-
ferência anterior, demonstra que todos que adoram ao dragão estão em
desacordo com as palavras de Deus e que aqueles que não se submetem
ao poder imperialista devem ser mortos: “sem o espírito profético que de-
nuncia e suscita à resistência, o mundo inteiro adere à idolatria que gera a
morte do povo” (BERTOLINI, 1994, p. 112).
É neste contexto que João exorta às comunidades que se voltem
para a vigilância; todos os cristãos devem vigiar, sendo fiéis e perseverantes,
pois ao contrário das aparências, Deus irá agir, realizando o seu plano.
O que devem fazer as comunidades? Não dar o braço a torcer. Pelo con-
trário, resistir até o fim. Isso pode acabar em cadeia e morte. Mas se não
for assim, a Besta não será vencida e o projeto de Deus não se realizará
(BERTOLINI, 1994, p. 113).
O projeto do Apocalipse é claro: exortar às comunidades para que
resistam e, mediante a resistência, comprovar que o plano de Deus é inven-
cível, porque são invencíveis seus seguidores, porque não temem a morte e
não se dobram à idolatria.
O falso profeta a serviço da Besta. Vi depois outra /besta sair da terra: tinha dois
chifres como um Cordeiro, mas falava como um dragão. Toda a autoridade da
primeira Besta, ela a exerce diante desta. E faz com que a terra e seus habitantes
adorem a primeira Besta, cuja ferida mortal fora curada (Ap. 13, 11-12).
Ainda no capítulo 13, versículos 11 e 12, João evidencia que a pro-
paganda é a arma que o império se utiliza para enfraquecer o movimento
dos cristãos. “O falso profeta a serviço da Besta: vi depois outra Besta sair
da terra: tinha dois chifres como um Cordeiro: mas falava como um Dra-
gão” (Ap. 13,11a). A terra a que se refere o versículo é a Ásia Menor e seus
cultos pagãos, representando aqui a propaganda da idolatria, cujo intento
era o desviar a atenção das comunidades cristãs de seu verdadeiro sentido.
João expõe a propaganda ideológica que sustenta os poderes imperiais, que
é falsa, porque fala como o “cordeiro”, em uma alegoria aos ensinamentos
de Jesus, mas a sua fala é a do Dragão, da disseminação da “blasfêmia”, da
palavra falsa que induz ao erro e ao desvio do verdadeiro caminho da vida.
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“Toda autoridade da primeira Besta, ela exerce diante desta. E faz com que
a terra e seus habitantes adorem a primeira Besta, cuja ferida mortal fora
curada” (Ap. 13,12). Neste ponto João afirma que a segunda besta tem toda
autoridade para agir em favor da primeira besta, fazendo com que todos
se curvem em adoração ao imperador. A propaganda faz com que todo o
povo acredite estar diante da reencarnação do imperador Nero, ressurgido
na crueldade de Domiciano, cujo poder está se sobrepondo ao esforço das
comunidades em reconhecer a supremacia de Deus.
Esta segunda Besta é um pelego. Sua autoridade e poder não vêm dela
mesma. Vêm de cima, da primeira Besta. Vêm do Império. O esforço da
segunda Besta consiste em fazer com que “a terra e seus habitantes adorem
a primeira Besta”, o Império. Isto significa que ela favorece a promove o
culto imperial. Exerce, portanto, uma função sacerdotal. Também exerce
uma função profética, pois chega a imitar o profeta Elias fazendo “descer o
fogo do céu” (MESTERS; OROFINO, 2008, p. 265-6).
A propaganda, até então inédita na história dos homens, mostrou que
sua eficácia está além da capacidade de compreensão do cidadão comum.
Não fosse a intervenção das lideranças cristãs da época e, talvez, todas as
comunidades tivessem cedido aos encantos da disseminação de informação
que seduz e confunde, que faz adeptos e os torna escravos. Do mesmo modo,
não fosse a interferência das mensagens propostas pelos líderes de um mo-
vimento ainda iniciante, mas que souberam se fortalecer pela fé, e os opres-
sores romanos talvez tivessem sido bem sucedidos e sufocado a resistência.
O papel desta (segunda besta) se torna mais importante que o da 1ª besta-
fera. Trata-se de toda a ideologia que sustentava Domiciano. Quer dizer, é
aquela propaganda inteligente e perspicaz que criava uma imagem falsa do
imperador. Ele era terrível e mau, porém a propaganda o transformava em
belo e bondoso. [...] A propaganda da ‘2ª besta’ fez grande parte do império
acreditar que ele fosse ‘Deus’. Realmente, Domiciano foi divinizado mais
do que qualquer outro imperador. Era adorado como um deus (14,4), Para
isso a ‘2ª besta’ agiu extraordinariamente (FERREIRA, 2009, p. 207).
A CONTEMPORANEIDADE E O APOCALIPSE
Está nessa demonstração de poder da aplicação da propaganda, que
vem sendo utilizada até os dias de hoje, que populações inteiras são subme-
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tidas aos desmandos de seus dirigentes. É por intermédio da disseminação
da informação manipulada pelos interesses do poder que os povos de antes
e de hoje são movidos. Ao se transpor o sentido da propaganda, que movia
o povo da época do Domiciano para os dias atuais, poderá ser observado
que a propaganda tem servido de instrumento contundente nas mãos dos
manipuladores da população.
Em tempos contemporâneos, onde a propaganda exerce uma for-
ça sutil sobre os indivíduos fazendo-os acreditar que necessitam consumir
para serem felizes, encontra-se o ponto nevrálgico de todo o poder que se
atribui à figura, quase mítica, do “Mercado”.
[...] não apenas a propaganda política mas toda a moderna publicidade de
massa contém um elemento de ameaça; que o terror, por outro lado, pode
ser totalmente efetivo sem a propaganda, desde que se trate apenas do
terror político convencional da tirania. Somente quando o terror objetivo
coagir [...] quando o regime político quer mais do que poder, somente
então o terror precisa da propaganda (ARENDT, 1989, p. 390).
Teorias econômicas que remontam as análises de teóricos do porte
de Adam Smith, tratados que procuram demonstrar que existe, de fato, um
ordenador que se impõe no que se convencionou chamar de uma “ética
de mercado”, que privilegia a propriedade privada e o valor que se propõe
àquilo que é convencionalmente contratado, nos acordos de trocas entre
força de trabalho e capital.
Se considerarmos a situação de opressão e desrespeito aos direitos
humanos que podem ser claramente vislumbradas em comunidades espa-
lhadas no nosso universo global, há que se afirmar que o retorno da besta
(se é que algum dia ela se foi), é hoje manifestado por um sistema econômi-
co e financeiro injusto e cruel. Nas sociedades contemporâneas a besta não
é mais personificada em algum líder político específico, mas também não
pode ser configurada em nações poderosas, embora estas existam. A besta
hoje se manifesta no grande capital, que se encontra nas mãos de indivídu-
os de países e culturas diferentes, mantidos, não por uma ideologia nacio-
nal, mas pela ganância atrelada a incessante busca pelo aumento dos lucros.
O imperialismo surgiu quando a classe detentora da produção capitalista
rejeitou as fronteiras nacionais como barreira à expansão econômica. A bur-
guesia ingressou na política por necessidade econômica: como não dese-
java abandonar o sistema capitalista, cuja lei básica é o constante cresci-
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mento econômico, a burguesia tinha de impor essa lei aos governos para
que a expansão se tornasse o objetivo final da política externa (ARENDT,
1989, p. 156).
O mundo contemporâneo apresenta, portanto, de forma globali-
zada, focos de populações pluriculturais, comunidades e grupos étnicos
que, seja de forma silenciosa – caminhando lentamente para a própria ani-
quilação (como os judeus nos campos de extermínio), ou mediante o em-
prego indiscriminado da violência, promovendo manifestações urbanas,
atentados ou guerrilhas rurais que, de qualquer modo, os conduzem ao
desaparecimento. São esses os modos com que tais populações procuram
expressar a opressão em que vivem e, de alguma forma, manifestar algum
tipo de resistência, como um grito pela vida.
Em ambos os casos, urbanos ou rurais, esses grupos são vitimizados
pela fome, pelas doenças, pelo aviltamento de seus direitos básicos, desen-
raizados e fragmentados em toda capacidade de reação pacífica, porque se
encontram impossibilitados de se unirem pela fé.
Como afirma Richard (1999, p. 196),
O Apocalipse destaca de uma maneira extraordinária a capacidade da Besta
de destruir as realidades espirituais. João expressa isso com o conceito de
blasfêmias, [...] A Besta tem uma boca que profere grandezas e blasfêmias.
É o orgulho espiritual da Besta. Com seu discurso arrogante e blasfemo,
ela destrói o nome de Deus (sua essência), a morada de Deus (sua presença
na história) e os santos. Esta é a maior periculosidade da idolatria: sua
capacidade de destruir o espiritual.
É hoje indiscutível a relação que se estabelece entre racionalidade,
capitalismo e secularização. O capitalismo se alastrou e ainda se alastra pelo
globo terrestre de forma acelerada, engolindo em sua passagem os mais
variados tipos de manifestações tradicionais e comunitárias responsáveis
pelas maneiras de ser e sobreviver de muitos povos. Na trilha inevitável
e homogeneizante, desconstrutora de identidades e nações são impostos
valores e costumes ocidentais, frutos da força do mercado e da sedução da
propaganda que o antecede e acompanha.
Nessa ampliação acelerada de novos mercados, objetivando au-
mentar constantemente legiões de consumidores, são introduzidas novas
formas de lidar com a realidade esvaziando as crenças, minando a fé e
destituindo de sentido a própria existência em troca das tecnologias que
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facilitam a vida prática. A aquisição de bens de consumo, intensificada
por uma propaganda que desenvolve e aprofunda o individualismo, faz
despencar em uma escala hierárquica os valores humanos e a ética essen-
cial. “O ocidente”, diz Hinkelammert, “se despediu do universalismo ético
e de suas responsabilidades pelos outros. Não tem nada a ver com eles”
(HINKELAMMERT, 1995, p. 224).
A imposição da racionalidade científica, travestida de progresso, sem-
pre impondo o novo, trouxe à humanidade riscos assustadores. Aquilo que
Beck (in Giddens, 2004) chama de “risco fabricado”, diferente dos riscos na-
turais que sempre fizeram parte da vida humana. Aqueles riscos não podem
ser compreendidos e, portanto, destituem o indivíduo de qualquer possibili-
dade de defesa, como o recente vazamento nuclear de Fukushima no Japão.
A persuasão não é possível sem que seu apelo corresponda às nossas ex-
periências ou desejos ou, em outras palavras, as necessidades imediatas.
[...] Toda ideologia que se preza é criada, mantida e aperfeiçoada como
arma política e não como doutrina teórica. [...] Seu aspecto científico é
secundário. Resulta da necessidade de proporcionar argumentos aparente-
mente coesos, e assume características reais, porque seu poder persuasório
fascina também a cientistas, desinteressados pela pesquisa propriamente
dita e atraídos pela possibilidade de pregar à multidão as novas interpreta-
ções da vida e do mundo (ARENDT, 1989, p. 189).
A modernidade, portanto, criou suas próprias bestas. A ausência de
personificação, porem, é algo que potencializa seu poder, pois não podem
ser localizadas, visualizadas, apontadas pelo ser humano comum. Como
o próprio ar, está em toda a parte, diluída no massacrante cotidiano das
grandes cidades e no doloroso esvaziamento e abandono das zonas rurais.
O poder da propaganda contemporânea, aliado a conhecimentos
sobre o funcionamento cerebral e a psique humana, invade mentes e cora-
ções deixando brechas mínimas para a reflexão e a contemplação.
Talvez a brecha capaz de trazer um pouco de alento e esperança deri-
ve exatamente do próprio medo. Esse instiga à busca de sentido, sinônimo
de proteção existencial. Essa busca ontológica de sentido seria, no dizer de
Eliade (2001), parte essencial da estrutura humana. Nisso talvez resida a
explicação para a incessante busca do sagrado empreendida pelos indiví-
duos urbanos de alto grau de escolaridade e a eclesiogênese demonstrada
pelo crescente número de igrejas neopentecostais que atendem, em sua
maioria, as classes mais despossuídas. Fenômeno que vem se disseminando
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pelo globo apesar das inúmeras previsões anteriores de que o crescimento
da racionalidade e da técnica acarretaria uma inevitável secularização com
o gradual desaparecimento da religião.
Essa reação religiosa crescente seria, com efeito, provocada pelo
medo ou estaria Eliade (2001) correto? Os humanos trazem em suas cons-
ciências a vontade permanente de ser, o que realmente tornaria a ideia de
um homem inteiramente racional uma abstração, algo que não existe na
realidade. Em termos de conteúdos e estrutura do inconsciente seriam to-
dos os humanos, portanto, homo religiosus. Seus sistemas simbólicos e ima-
gens mitológicas são espantosamente semelhantes. A resistência resiliente
das comunidades se manifesta exatamente no despertar e no estímulo da
religiosidade interior e nisso reside a força da fé.
CONCLUSÃO
A crueldade daquilo que se considera “as bestas” contemporâneas não
obteria, desse modo, sucesso absoluto em sua empreitada. Ao minarem a
resistência física, destruírem recursos naturais e acumularem desordenada-
mente lixos impossíveis de serem descartados, em nome da ganância e do
lucro estariam, na verdade, trilhando um caminho, já não tão lento, de au-
todestruição. O poder da grande besta apresenta hoje, portanto, uma grande
e multifacetada crise, inteiramente de aspecto autofágico. Por outro lado,
as populações, sejam urbanas ou rurais desenvolvem meios de lidar com a
exploração que conduz a uma gradual fragmentação de suas existências.
O livre comércio global provocou destruição ambiental no mundo inteiro
[...] A economia internacional é controlada pelas empresas do Norte [...]
É o Sul que suporta de forma desproporcional o fardo ambiental da econo-
mia globalizada. [...] instituições globais como o Banco Mundial, o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio
(OMC) estão impondo à natureza, às mulheres e ao Terceiro Mundo o
custo do ajuste. [...] a tendência recente favorece o apartheid ambiental,
no qual, pela política global determinada pela “santíssima trindade” [...]
apoiadas pelo governo dos países economicamente poderosos, tentam
manter o poderio econômico do Norte e o estilo de vida dissipador dos
ricos (SHIVA, 2004, p. 164).
A ausência de profetas propõe nessa modernidade tardia um mo-
vimento de interioridade, a subjetividade determinante de escolhas, re-
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