Table Of ContentÁfrica em Análise
I. De Portugal sobre a realidade africana:
o ponto de vista de Fernando Nobre
II. África no contexto da globalização actual
II.1. O neoliberalismo ao assalto de África
II.2. O Mali vítima da dívida
II.3. Os acordos que Bruxelas impõe a África
II.4. Compreender o problema da dívida
II.5. A violência discreta e o poder do dinheiro
II.6. A caravana da dignidade contra os arames farpados
II.7. Uma anulação das dívidas à espera de melhores dias
III. África, as três instituições irmãs e os seus mandamentos:
estabilizar, privatizar e liberalizar
III.1. O algodão africano minado em todas as frentes
III.2. A África e as suas matérias-primas
III.3. Fim de ciclo para a OMC
III.4. A OMC: Fundamentalmente não democrática
III.5. A OMC: Arbitrária e não democrática
III.6. As estratégias de negociação da União Europeia
IV. Questões de África, Questões do Mundo:
dois filmes, imagens de África
IV.1. Djourou: a corda ao teu pescoço
IV.2. Bamako
IV.2.1. “Bamako”, filme de acção e de justiça
IV.2.2. O processo da dívida, o FMI e o Banco Mundial
IV.2.3. Tribunal africano para o Banco Mundial
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I.
De Portugal sobre a realidade africana:
o ponto de vista de Fernando Nobre
Bamako e Djourou
Fernando de La Vieter Ribeiro Nobre
Abril, 2007
Os dois filmes, Bamako e Djourou, põem em evidencia os mecanismos
perversos, conscientemente elaborados e implacavelmente impostos por certas instituições
(FMI, Banco Mundial, Clube de Paris...) aos países mais débeis para melhor os subjugar: a
dívida externa e os planos de (des)ajustamento estrutural, autênticos assassinos económicos
a soldo, são os verdadeiros braços armados das economias dominantes.
O impacto dessas novas formas de colonialismo, para não dizer de escravatura,
são aterradoras para as largas dezenas de milhões de pessoas que diariamente vêem a
desesperança do seu amanhã e vivem a humilhação da sua exclusão e da fome, sobretudo
na África sub-sariana. O exemplo do Mali (que conheço!) é extensível a quase toda a
África, assim como a muitos países da América Latina e da Ásia Meridional.
Os dramas pessoais que estas duas armas de destruição maciça (a dívida e os
planos de desajustamento estrutural impostos pelo FMI e orquestrados com os seus
irmãos siameses, o Banco Mundial e o Clube de Paris) provocam estão bem patentes
nestes dois filmes que alertam para a realidade medonha, sendo ao mesmo tempo
portadores de esperança para África. A sociedade civil africana em plena expansão e
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afirmação, sabe hoje quem são os principais responsáveis pela miséria do seu presente e
pela armadilha que hipoteca o seu futuro: uma governação local corrupta e sem a
mínima noção do bem público, submetida ou conivente com os planos irresponsáveis
do FMI, do BM e do Clube de Paris). Está, por isso, dado o primeiro passo no sentido
de exigir uma solução viável ao seu desespero actual. Tal facto está patente no filme
Bamako.
Também no filme Djourou é posta a nu a perversidade do incitamento às
monoculturas de exportação (em análise o paradigmático exemplo de algodão no Mali)
como mecanismo de derrocada e de endividamento letal dos países que se submetem aos
“conselhos” e “imperativos” dados pelas instituições já referidas.
Com estes dois filmes, estou certo de que está aberto o debate que permitirá, a
termo, encontrar soluções que evitem tragédias até hoje nunca vistas: a Sul como a Norte.
Espero que a Inteligência e o Humanismo se sobreponham a tempo à Ganância
e à Irresponsabilidade!
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II.
África no contexto da globalização actual
II.1.
O neoliberalismo ao assalto de África
Mali e Níger: a mundialização neoliberal contra os mais pobres
Jean Nanga, CADTM
Dezembro, 2005
Uma das características do ano que termina é que foi rico em promessas
relativas ao futuro de África.” As grandes instituições das metrópoles capitalistas quase
rivalizaram em intenções generosas a seu respeito, da Comissão para a África de Tony
Blair à Conta de Desafio do Milénio de G. W. Bush, do Banco Mundial sob a direcção de
Paul Wolfovitz ao G8 reunido à Gleneagles, dos Objectivos de Desenvolvimento do
Milénio da ONU ao compromisso japonês aquando da Cimeira sobre Ásia África (Abril
de 2005, Djakarta). A manifestação mediatizada desta generosidade foi o anúncio da
anulação de 40 mil milhões de dólares de dívida multilateral, de 18 países entre os mais
pobres, quase todos eles africanos.
Toda esta generosidade parece, contudo, não ter nenhum efeito sobre a
realidade. A África subsahariana permanece submetida aos mecanismos arrasadores da
mundialização neoliberal, que exporemos a partir dos casos do Níger e do Mali, dois dos
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países mais pobres do planeta, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, mas dois povos que não demonstram qualquer sinal de resignação.
Níger, o país mais pobre
Durante o primeiro semestre de 2005, três milhões de pessoas de todas as
idades foram expostas à fome e abandonados ao seu destino no Níger. Centenas de vítimas
– sobretudo as crianças que morreriam ao ritmo de uma dezena por dia – são o resultado
da seca e da invasão de gafanhotos que têm destruído os campos. Situação esta a que o
governo deste país do sahel não foi capaz de se opor com qualquer dispositivo preventivo,
hesitando mesmo em aceitar a realidade. Quanto à “comunidade internacional”, esperou
meses e mortes, antes de se mobilizar, apesar do alarme lançado por associações locais e
por muitos observadores1.
A invasão dos gafanhotos e o ano muito seco só vieram agravar uma situação já
deplorável devida às políticas económicas e sociais executadas pelos diferentes regimes
neocoloniais que se sucederam desde a independência. A passagem do neocolonialismo
clássico das três primeiras décadas à neoliberalização apresentada como solução de modo
algum produziu o efeito prometido2. Bem pelo contrário, apesar de ter sido posto sob
tutela das instituições de Bretton Woods, sob a forma de Programa de Ajustamento
Estrutural, desde 1981, o Níger é assim, hoje em dia, o país mais pobre do planeta, de
acordo com os Indicadores do Desenvolvimento Humano (IDH) do PNUD: 63% da
população vive debaixo do limiar de pobreza, cerca de 83% são analfabetos, a mortalidade
infantil atingiu 121,69 ‰... O peso da dívida pública externa, cujo montante em 2005
ascende a 832,1 mil milhões de francos CFA (1,27 mil milhões de euros), isto é, 66,3%
do PIB nominal, é uma das razões da incapacidade do Estado nigeriano em evitar ou fazer
face a esta catástrofe social. Sendo objectivamente impossível agir sobre a pluviometria,
pelo menos a luta contra a invasão dos gafanhotos teria sido efectuada com alguma
eficácia, se o Estado nigeriano não tivesse como prioridade o respeito do registo do
calendário do pagamento da dívida pública externa, que representava 22,4% das receitas
orçamentais em 2004. Embarcado na Países Pobres Altamente Endividados (PPAE),
segundo o qual era suposto reduzir o peso da dívida, o Estado nigeriano não atrasou, em
nenhum destes últimos anos (com excepção do ano 2001), o pagamento do serviço da
dívida. Isto em detrimento dos sectores sociais, como a saúde e a educação nos quais a
1 Conforme Jean Nanga, “Famine et marchandisation de la charité au Niger”, SolidaritéS, 69, Junho, 2005 e disponível em http://www.solidarites.ch;
Claude Quémar, “Níger: vraie crise, fausses réponses”, outubro, 2005 e disponível em http://www.cadtm.org/.
2 Conforme “Niger, La mondialisation capitaliste impose un nouvel internationalisme”, entrevista com Mamane Sani Adamou, Inprecor, n° 497,
Setembro, 2004.
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economia de custos, por exemplo, conduziu ao recrutamento maciço dos “voluntários”
sem formação e muito mal remunerados, em substituição de uma grande parte do pessoal
formado, qualificado3. Mesmo para responder à urgência social de evitar ou reduzir o
impacto da crise alimentar, não podia haver derrogação da exigência do “reforço da gestão
pública para ajudar efectivamente a orientar e hierarquizar as despesas”4 do programa de
Facilidade para a Redução da Pobreza e o Crescimento (FRPC), de que o Estado
nigeriano é “beneficiário”.
Humanismo neoliberal
As vítimas desta situação de fome generalizada não correspondiam, sem dúvida,
ao perfil do pobre desenhado pelo FMI e pelo Banco Mundial. Assim, foi necessário
esperar pela mediatização desta realidade, deste drama, para que fosse, em parte, ouvida a
reivindicação da distribuição gratuita dos alimentos para os esfomeados. Uma
reivindicação de bom senso que parecia uma enormidade para o governo e para os seus
parceiros da “comunidade internacional” (Estados Unidos União Europeia...), porque as
suas opções eram a venda de alimentos a preços “moderados” aos esfomeados ou a troca de
alimentos contra trabalho.
As famílias que ainda tinham algumas cabeças de gado, descarnadas, vendiam-
nas a preços que já não podiam ser mais irrisórios do que o que eram. Outros chegavam a
endividar-se, pela impossibilidade de trabalhar. “Trade, not aid”5, tal é o princípio da
política de “cooperação” do governo dos Estados Unidos pelo qual zela a USAID, apoiada
pela União Europeia e pelo Programa Alimentar Mundial. Este drama foi assim a ocasião
para se consolidar quer as relações mercantis na sociedade quer o individualismo que a
acompanha, amplificados pela época neoliberal.
É evidente que este humanismo neoliberal e espectacular apenas poderia
reduzir a amplitude do desastre, não seria incapaz de lhe trazer uma solução radical. O
projecto da “comunidade internacional” tantas vezes repetido é a “redução da pobreza” a
longo prazo, não a sua erradicação, no entanto, objectivamente possível. Assim a crise
alimentar perdura: “Os preços continuam muito elevados no mercado, o que impede
numerosas famílias de comprarem os alimentos, devido à descapitalização sofrida durante
a crise:” Para reembolsarem as dívidas contraídas, as famílias hipotecaram as receitas
esperadas da colheita de Outubro, enquanto apenas 2/3 da terra puderam ser cultivadas
3 Ibidem.
4 http://www.imf.org/external/np/exr/facts/fre/prgff.htm.
5 “Comércio e não assistência”.
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por falta de sementes e mão-de-obra, o que aumenta a sua vulnerabilidade e o risco de
desnutrição. Os efeitos da crise vão prolongar-se durante o ano 20066”. Em certas regiões,
a situação das crianças agravou-se mesmo. À “comunidade internacional” falta vontade
para reunir os 80 milhões de dólares que exige a situação: apenas 16 milhões de dólares
foram reunidos no primeiro semestre de 2005, enquanto “as guerras do Iraque e do
Afeganistão custam hoje 5,6 milhões de dólares por mês, ou seja, em termos aproximados,
é o equivalente ao produto interno bruto do Níger... dum ano. E um aumento de 202 mil
milhões (para os próximos seis anos) acaba de ser atribuído ao Departamento da
Segurança Interna, encarregado de proteger o território e os interesses americanos7.”É-se
tentado a falar de “fome neoliberal” como Mike Davis fala de “fomes coloniais”8. Porque,
uma situação de fome declarada é para os generosos “doadores” um mercado possível no
futuro. De forma clássica, tratava-se de alterar os hábitos alimentares dos sinistrados. Por
exemplo, a uma população tradicionalmente consumidora de painço, os “doadores”
ofereciam sobretudo milho ou arroz que se iria tornar, assim, um produto de consumo
corrente e que era necessário importar.
Mas, hoje em dia, trata-se mais de uma oportunidade a agarrar para fazer
aceitar os produtos geneticamente alterados. Assim, a posição do governo nigeriano na
matéria conheceu uma evolução bastante rápida desde o reconhecimento oficial da crise
alimentar. Enquanto o quadro nacional de bio segurança, elaborado em 2005, exprime
uma certa prudência, em Novembro de 2005, Niamey, a capital do Níger, foi o lugar
escolhido para organizar um seminário regional sobre “A cobertura mediática da
biotecnologia agrícola - Constrangimentos e oportunidades para a imprensa na África do
Oeste”. Um seminário organizado pelo Instituto Internacional de Investigação Agrária de
Zonas Semi-áridas (ICRISAT), Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações da
Biotecnologia (ISAAA) e a UNESCO. O ISAAA é um organismo que tem por vocação a
luta contra a fome e a pobreza nos países ditos em desenvolvimento, sobretudo pela
promoção das culturas transgénicas. Os seus principais financiadores são Cargill, Dow
AgroSciences, Monsanto, Pionneer, Hi-Bred, Syngenta e estas são também as principais
multinacionais dos OGM. Na altura desta operação de consolidação do “ensinamento”
dos jornalistas9·, foi tornado visível a experimentação dos cereais geneticamente
modificados na estação de investigação do ICRISAT, a alguns quilómetros de Niamey,
6 Amador Gomez (director técnico de Acção Contra a Fome, Espanha), “Pas de répit pour le Niger: la malnutrition infantile continue d’augmenter”,
Comunicado de imprensa, 14 de Novembro, 2005.
7 Claude Angeli, “La genante franchise des géneraux de Bush”, Le canard enchaîné, 20 de Julho, 2005.
8 M. Davis, Genocides tropicaux:catástrofes naturelles et famines coloniales (1870-1900), Aux origines du sous-developpement, Paris, ed. Decouverte,
2003. O que se pode também aplicar à situação no Sudão e ao Darfur.
9 Em Junho de 2005 foi criada a Rede de Comunicações Oeste-Africanas em Biotenologia Agrícola (RECOAB).
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Description:possibilidade de ganhar, uma vez que o jogador mais forte aldraba. É o caso do café (sobretudo desde a aparecimento do Vietname como um.