Table Of ContentFERNANDO FREITAS
PAULO AMARANTE
MEDICALIZAÇÃO EM
PSIQUIATRIA
2* EDIÇÃO REVISTA
FIOCRUZ
CopyrightO 2017 dos autores
Todos os direitos desta edição reservadosà
/
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ EDITORA
1º edição: 2015
2º edição revista: 2017
Revisão
Marcionílio CavalcantidePaiva
MyilenaPaiva
Normalização de referências
Clarissa Bravo
Capaeprojetográfico
CarlotaRios
Editoração eletrônica
CarlosFernandoReis
Produçãográfico-editorial
Phelipe Gasiglia
Catalogação nafonte
Instituto de Comunicação eInformação Científica e Tecnológica em
Saúde/Fiocruz Biblioteca de Saúde Pública
F866m Freitas, Fernando
Medicalização em Psiquiatria. / Fernando Freitas e Paulo
Amarante. —Rio deJaneiro: Editora Fiocruz, 2017.
148p. (Coleção Temas em Saúde)
ISBN: 978-85-7541-498-9
1,Psiquiatria. 2. Medicalização. 3.TranstornosMentais-terapia.
4. Diagnóstico. 5. Indústria Farmacêutica. 6. Antipsicóticos -
história. 7. Antidepressivos -história. IL. Amarante, Paulo.II.Título.
CDD - 22.ed. — 362.2
2017
EDITORA FIOCRUZ
Av.Brasil,4036—1º andar—sala112— Manguinhos
21040-361 —RiodeJaneiro —RJ Editora filiada
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www.fiocruz.br/editora
Mas não há dúvida que os remédios dehojesão mais bonitos de
aparênciae trazem nomes tão singulares que não sei como ospoetas
ainda não começaram a adotá-los nos títulos de seus livros de
poemas. Masisso em breve acontecerá,pois são nomes misteriosos
eao mesmo tempo moderníssimos, que, não significando claramente
nada, sugerem a cada um mundos e mundos novos; o que éfunção
artística e muito adequada neste momento em que todos estão
desejando nãopropriamente deixar este mundo, mas trocá-lopor
outro, na esperança de vida melhor.
Cecília Meireles
SUMÁRIO
11
Apresentação
1. As Diversas Faces do Fenômeno 17
2. Diagnosticar Doenças 41
3. Medicalização: incluir ou excluir 65
4. O Mito Científico do Desequilíbrio Químico e
Suas Doenças T7
5. Ninguém Pode Escapar 105
6. A Desmedicalização É Possível: experiências 113
Reflexões Finais 131
135
Referências
Sugestões de Leituras e Filmes 139
APRESENTAÇÃO
Muitos são os momentos na vida em que recorremos,
de uma maneira ou de outra, a um médico, um psiquiatra,
psicólogo ou a outro profissional da saúde. Quandoestamos
doentes, evidentemente. Não haveria aí qualquer surpresa.
Mas igualmente os buscamos quando queremos estar bem, ou
quando queremosficar ainda melhor. Agimos assim movidos
pelo imperativo de que a “saúde é o bem-estar físico, mental
e social”. E para assegurar esse estado ideal (seria o mesmo
que a felicidade?!), não medimos esforços. Uma das evidências
mais imediatas do que representa esse imperativo de saúde,
consagrado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a qual
nos referimos anteriormente, é o lugar que o investimento em
saúde ocupa em riosso orçamento. Cada vez mais dedicamos
umasignificativa parcela de nossos rendimentos a despesas com
saúde; muito mais que nossos antepassados faziam. Estaríamos
ficando cadavezmais doentes? Ou estaríamos acadadia ficando
mais saudáveis, já que gastamos mais com saúde? Ofato é que
o que somos parece estar inseparável do discurso biomédico.
Fomos convencidos de que essa é a via privilegiada para
que possamos enfrentar os desafios da existência. Afinal de
contas, nos acostumarmos a pensar que, se a educação é impor-
tante, assim como o transporte público, a segurança pública
[1
Ou os investimentos em infraestrutura, a saúde é o bem mais
precioso de que dispomos.
Em vista disso, não é de se estranhar que em nosso cotidia-
no dificilmente haja algo que fazemos, sentimos ou pensamos,
sem que, de uma forma ou de outra, recorramos às representa-
ções e normas que nos são incutidas a respeito do que é saudá-
vel ou patológico.
Não obstante, ao mesmo tempo que nos sentimos protegidos
ao incorporar em nossa rotina o discurso médico e suas práticas
afins, temos a tendência a nos considerar sempre na situação de
pacientes. Somos movidos pelo medo epelaesperança. Algo que
até então considerávamos saudável, comum, que nos deixava
seguros de sermos normais, de uma hora para outra sofre uma
mudança de valores. Diariamente somos surpreendidos com
alguma notícia de que cientistas acabam de sugerir que algo
passou a ser considerado como patológico ou nocivo à saúde;
ou com alertas de que indicadores para diagnosticar determinada
doença foram alterados. Como não nos sentirinseguros? Por que
tal medicamento ou procedimento clínico, que até então eram
considerados recomendados, passaram a produzir resultados
iatrogênicos antes considerados irrelevantes? Por sua vez, a cada
medo, criado ou revelado, há promessas de como atenuá-lo ou
mestno superá-lo. Oscilamos entre o medo e a esperança de que
a ciência trará melhores dias. Componentes inerentes à existência
(o Dasein heideggeriano) ganham novas formulações: a angústia,
por exemplo, se transforma em transtorno de ansiedade, e afinitude
Ou O serpara-morie, em transtorno com essa ou aquela designação
científica. Tal processo passou a set conhecido como medicalização
da existência ou medicalização da vida cotidiana.
12 ]
Em se tratando do nosso imaginário e das relações de
caráter especular por ele criado, somos muito diferentes dos
nossos antepassados. A religião e a lei, que, para os homens
do passado, haviam desempenhado papel hegemônico, têm
sido substituídas pelo imaginário biomédico. Com isso, a
medicina e suas práticas discursivas afins adquirem o papel
de significante-mestre a organizar nossas vidas. Em razão
disso, será que estamos nos tornando mais doentes que nossos
antepassados? Uma resposta muito comum é que estamos
ficando mais doentes em razão decausas inerentes àcivilização,
entre as quais o grande vilão seria o estresse, por exemplo.
Outra resposta é que a própria medicina e suas práticas afins
são responsáveis pelo nosso adoecimento, ao medicalizarem as
experiências mais comuns e naturais da nossa existência.
Em princípio, tudo pode ser patologizado, na medida em
que não nos faltam motivos para sofrimento. São inerentes à
nossa existência as sucessivas experiências físicas ou emocionais
de que não gostamos.
Emumpassadonão remoto considerávamos taisexperiências,
atualmente tidas como patológicas, como experiências normais
a serem enfrentadas com os recursos naturais e socioculturais
conquistados ao longo de milhares de anos de civilização.
Segundo sabedoria popular muito conhecida, basta se estarvivo
para se sofrer disso ou daquilo. Mas hoje em dia tudo parece ser
diferente. Afinal, viver seria a causa das doenças? Ou será que
estamos doentes de uma epidemia de medicalização? E. O que vem à
ser exatamente a medicalização?
[13
-
À primeira vista, medicalizar sugete medicar, quer dizer,
“euidar(-se) por meio de medicamentos”, ou também “exercer
a medicina”. Contudo, como,teremos oportunidade de ao
rever
longo do livro, na verdade esse fenômeno moderno chamado
medicalização é polissêmico. Em comum, configura-se como o
processo de transformar experiências consideradas indesejáveis
ou perturbadoras em objetos da saúde, permitindo a transposição
do que originalmente é da ordem do social, moral ou político
para os domínios da ordem médica e práticas afins.
Por práticas afins entendemos aqui práticas discursivas
de diferentes atores que alimentam o próprio processo de
medicalização. Com destaque tantoparaaindústria farmacêutica
e de tecnologias de saúde, com seu interesse de ampliação do
mercado para seus produtos, quanto para pesquisadores que
dão suporte aesse processo mediante supostas bases científicas.
Estão incluídos nesse grupo também os planos e seguros de
saúde, os escritórios de advocacia, os grupos organizados
de pacientes e familiares, na medida em que lutam pelo
aprofundamento da medicalização da própria sociedade.
O propósito deste livro é apresentar ao leitor uma análise
do fenômeno da medicalização e suas consequências individuais
e sociais propriamente ditas. Na condição de profissionais
da saúde mental, nosso foco está voltado para a psiquiatria e
práticas discursivas afins.
O conteúdo da obra se destina a um público leitor não
necessatiamente composto apenas de profissionais da saúde.
Ainda que os tópicos a serem aqui abordados sejam, em princípio,
de natureza complexa, eles foram escritos em uma linguagem
14 ]
acessível também ao público leigo. Nossa pretensão é que a
problemática da medicalização do sofrimento psíquico seja
compreendida também por aqueles que mais padecem dela —
na verdade, todos nós, quando transformados em pacientes.
Portanto, retrataremos tal complexidade fazendo uso de
uma linguagem simples, por vezes coloquial, com o fim de
atingirmos todo tipo de público. Esperamos que aqueles leitores
acostumados a uma linguagem de cunho mais científico possam
partilhar desse objetivo conosco.
O modo como vamos expor a problemática damedicalização
do sofrimento psíquico segue o roteiro da aliança feita entre a
psiquiatria e a indústria farmacêutica. Embora os primórdios
dessa aliança possam ser encontrados desde pelo menos a Grécia
antiga—o que por muitos é jocosamente chamado de santa aliança
ela ocorre de fato a partir da segunda metade da década de
—
1950. Desde então, vivemos em uma época caracterizada pela
ideia de que os problemas ora chamados de problemas mentais
podem e devem ser curados por drogas. O mandato social de
cura atribuído àmedicina mentalpassaa ficar inseparávelda ideia
promovida pela indústria farmacêutica de que as drogas podém
comum
aliviar os sintomas. Essa aliança é consumada porque em
há o princípio do desequilíbrio químico no cérebro. As drogas
ajudariam a restaurar o equilíbrio químico, umavez que lá subjaz
omecanismo patológico responsávelpelaprodução dos sintomas.
Tal aliança, entretanto, ultrapassa os limites tradicionais da
psiquiatria e da própria indústria farmacêutica. Antes de essa
aliança se consagrar, a psiquiatria moderna já se empenhava na
cura dos problemas psicológicos pelavia biológica, e a indústria
Lis
farmacêutica, por sua vez, oferecia seus produtos psicotrópicos.
A sociedade já chegou a acreditar no coma insulínico como
terapêutico, nas terapias eletroconvulsivas (ECT), na lobotomia,
na malarioterapia, no choque cardiazólico, na terapia do
hormônio do sexo, nos barbitúricos, nas anfetaminas e em
tantas e tantas outras intervenções bizarras que nem merecem
ser aqui mencionadas.
A impressão que temos hoje, ao relembrarmos tais práticas
terapêuticas, é de estarmos visualizando o que foi a pré-história
da psiquiatria conternporânea. Afinal, a partir da descoberta dos
antipsicóticos e dos antidepressivos, na segunda metade dos
anos 1950, assim como dos avanços relacionados à classificação
dos transtornos mentais — até então alcançados pela psiquiatria,
sobretudo com o Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (DSM-IID, de 1980 —, a maioria dos profissionais da
área passa a enxergar o passado e a se perguntar como pôde
haver tamanha ingenuidade a ponto de não se acreditar que o
que havia à época pudesse vir a produzir tão bons resultados.
E mais: o que levou tantas pessoas a acreditar nessas falsas
ideias? Enfim, também não será falsa a ideia atual sobre o fato
de os transtornos mentais serem consequência de desequilíbrio
químico no cérebro?
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