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historiador não ter ideias?
As reflexões teóricas deste livro buscam
estimular a pesquisa empírica, inspirando-lhe
problemáticas e caminhos metodológicos,
orientando as opções e decisões de critério
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O livro tem precisamente este objetivo:
fazer circular, renovar, estimular e transmi-
tir cultura. Ele deseja ser e promover uma José Carlos
recriação do mundo e dos seus sentidos.
HISTÓRIA
& TEORIA
Historicismo, Modernidade,
Temporalidade e Verdade
José Carlos Reis
HISTÓRIA
& TEORIA
Historicismo, Modernidade,
Temporalidade e Verdade
3 Edição
a
FGV
EDITORA
ISBN — 85-225-0424-3
Copyright © 2003 José Carlos Reis
Direitos desça edição reservados à
EDITORA FGV
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todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei nfl 9.610/98).
Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade do aucor.
1a edição — 2003
2a edição — 2005 Apresentação 7
3a edição — 2006
1a reimpressão — 2007 1. História da história: civilização ocidental e sentido
2a reimpressão — 2008 histórico 15
3a reimpressão — 2009 Metafísica e história 15
REVISÃO DE ORIGINAIS: Maria Lúcia Leão Velloso de Magalhães A modernidade 22
PROJETO EDITORIAL: Editora FGV
Modernidade e história-conhecimento 36
REVISÃO: Fátima Caroni, Márcia Pignataro A pós-modernidade 42
CAPA: Leonardo Carvalho Pós-modernidade e história-conhecimento 53
ILUSTRAÇÃO DE CAPA: Estatueta feminina em terracota, Chipre antigo Breve levantamento bibliográfico 62
© Birmingham Museums and Art Gallery
2. Da história global à história em migalhas:
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca
o que se ganha, o que se perde? 67
Mário Henrique Simonsen/FGV
Modernidade iluminista versus pós-modernidade
Reis, José Carlos
História & teoria: historicismo, modernidade, tempo- estruturalista e pós-estruturalista 68
ralidade e verdade / José Carlos Reis. — 3. ed. —• Rio de F. Dosse: da história global à história em migalhas 73
Janeiro : Editora FGV, 2006. O conceito de ciência histórica dos Annales 80
248p.
A história global 85
Inclui bibliografia. A história em migalhas (en miettes ou eclatéè] 88
O que se ganha e o que se perde? 91
1. História — Filosofia. I. Fundação Getulio Vargas. II.
Bibliografia 95
Título.
CDD —901 3. A especificidade lógica da história 97
O conhecimento histórico como problema 97
O modelo nomológico 106
O modelo compreensivo 776"
O modelo conceituai 124
O modelo narrativo 132
Bibliografia 145
Apresentação
4. História e verdade: posições 147
Introdução 147
O problema 149
Qual o alcance da verdade histórica? Posições 755
Parágrafos de transição 166
Conclusões 775
Bibliografia 176
5. O conceito de tempo histórico em Ricoeur, Koselleck
e nos Annales: urna articulação possível 179 Este livro reúne seis ensaios sobre teoria da história. Inspirado em
Discursando sobre o tempo: o físico, o filósofo e o historiador 779 Gilberto Freyre, intitulei-o História & teoria, querendo dizer o mesmo que
O tempo histórico seria um terceiro tempo entre a Freyre com Casa-grande ò" senzala: que não são termos separáveis, em opo-
natureza e a consciência? 183 sição ou excludentes, e sim que, embora pareçam assimétricos, são asso-
Conclusão: uma articulação possível 207 ciados, remetem-se um ao outro, estão ligados implícita e profundamente,
Bibliografia 205 inextricavelmente imbricados. A pesquisa histórica mantém com a teoria da
história uma relação de fecunda tensão: por um lado, toma-a como dire-
6. Dilthey e o historicismo, a redescoberta da história 207
cionadora do seu olhar, por outro, nega-a, para sustentar que o vivido é
A Revolução Francesa e a redescoberta da história 207
sempre novo e alheio a toda teoria. A teoria também mantém com a pes-
Historicismo: um conceito? 214
quisa uma relação igualmente fecunda e tensa: quer se impor sobre a do-
Dilthey e o historicismo 22íT
cumentação e sistematizar a experiência vivida, mas aceita a pluralidade de
Bibliografia 244
perspectivas possíveis e considera necessária e desejável a resistência do vi-
vido às suas orientações. Dessa resistência depende a sua renovação, a cria-
ção de novas interpretações. Portanto, a relação entre teoria histórica e ex-
periência vivida é tensa, uma relação ao mesmo tempo de aceitação e de
recusa recíprocas. Não há pesquisa histórica empírica sem o apoio implícito
ou explícito da teoria e a teoria é estéril sem a pesquisa histórica. Uma se ar-
ticula com a outra e se constituem reciprocamente.
As reflexões teóricas deste livro aspiram a estimular a pesquisa em-
pírica, inspirando-lhe problemáticas, caminhos metodológicos, orientando
as opções e decisões de critério e valor. E infecundo o desdém de historia-
dores pela discussão teórica e igualmente infrutífera a discussão teórica sem
apoios documentais. Pode-se priorizar uma ou outra, mas não é possível
desvincular uma coisa da outra. Pode um historiador não ter ideias? Para
Veyne, "é mais importante te:' ideias do que conhecer a verdade". Enfim, a rcpresentaçao temporal. A civilização ocidental, apói os gregos, interesscu-
querela empinstas X teóricos não deve ocorrer, pois ilegítima.
se mais pelo (muro e avalia o presens e o p-.issado a partir de seu horizonte
Estes escudos foram produzidos ao longo de minha carreira acadé- c!e espera, de sua expectativa em relação ao futuro. A percepção do futuro
mica, em datas diferentes, o que justifica uma provável heterogeneidade. cia pós-modernidade é diferente daquela da modernidade e, em conse-
São escritos de professor, portanto vinculados diretamente aos cursos que quência, a representação do passado, os objetos, os problemas, os objetivos,
ofereci na área de teoria e metodologia da história: primeiro, na Universi- os valores da comunidade historiadora mudaram. A pergunta do capítulo é:
dade Federal de Ouro Preto e, atualmente, desde 1997, na Universidade Fe- a passagem da modernidade à pós-modernidade significou precisamente o
deral de Minas Gerais. Neles, o leitor encontrará reflexões, sistematizações, que para a historiografia?
organizações, sínteses de vasta bibliografia sobre alguns temas centrais da teo- No segundo capítulo, "Da história global à história em migalhas:
ria da história. Os seis ensaios tratam de temas clássicos e atuais, como mo- o que se ganha, o que se perde?", texto que produzi para um colóquio
dernidadelpos-modernida.de, historiografia contemporânea, temporalidade, ver- sobre historiografia contemporânea promovido pelo Departamento de
dade, modelos epistemológicos, historicismo. São temas que, imagino, interessam História da UFRGS, em 1997, e publicado em coletânea organizada pela
a todos os estudantes de história, sobretudo aos professores. Estes ensaios promotora do evento, professora Silvia Petersen, prossigo a discussão
não são criptogramas. Foram escritos em linguagem clara, estruturados de sobre a historiografia contemporânea iniciada no capítulo anterior, tema-
forma transparente, respeitando o leitor e desejando obter a sua atenção. tizando a principal mudança na passagem à pós-modernidade, que foi o
Como já disse, são escritos de professor: simples, diretos, generosos. São es- fim da busca de uma história global. Partindo da tese de Dosse de que a
tudos independentes, podendo ser selecionados uns e outros e lidos isola- terceira geração dos Anneiles teria feito uma "história em migalhas", reto-
damente. Mas o livro pode também ser lido por inteiro, do princípio ao mo a historiografia dos Ar.nales, procurando entender o que as primeiras
fim, como um romance, pois, em sua aparente autarquia, os capítulos se re- gerações quiseram dizer com a proposta da "história total ou global". Para
metem e se esclarecem reciprocamente.
Dosse, a terceira geração teria traído os fundadores, ao não mais se inte-
No primeiro capítulo, "História da história: civilização ocidental e ressar por essa perspectiva totalizante. Esboço várias tentativas de defini-
sentido histórico" — um estudo vulnerável e ambicioso, recente e iné- ção do que os primeiros Annales estariam querendo dizer com história to-
dito —, faço um sobrevoo da cultura ocidental desde os gregos até a dita tal. No final do capítulo, procuro avaliar, nesta passagem da história
pós-modernidade. Dedico-me especialmente a discutir essa transição da global à história em migalhas, que perdas e que ganhos poderiam ter ha-
modernidade à pós-modernidade, procurando definir e datar esses conceitos vido para a historiografia. A pergunta do capítulo é: o fim da busca da his-
polémicos. Sobretudo, procuro distingui-los pela repercussão que tiveram tória total-global representou precisamente o que para o pensamento his-
sobre a historiografia. Minha hipótese é que a produção historiográfica é tórico?
que vai decidir se os termos "modernidade" e "pós-modernidade" fazem No terceiro capítulo, "A especificidade lógica da história" — um
senado ou não, se se referem ou não a processos reais: houve mudança na estudo também vulnerável e ambicioso, recente e inédito —, tem-se uma
historiografia? Quem, quando, como e onde? Se há um "quem, quando, discussão epistemológica sobre os diversos caminhos teórico-metodológi-
como e onde" historiográficos, então esses termos devem ser teoricamente cos abertos à história nos séculos XIX e XX. Problematiza-se até mesmo a
levados em consideração. O capítulo procura mostrar as articulações entre possibilidade do conhecimento histórico. A história é possível? A tarefa do
modernidade e historiografia moderna e pós-modernidade t historiografia historiador é realizável? Após um inventário das inúmeras objeções feitas
pós-moderna, revelando que há diferenças profundas entre uma historio- ao ofício de historiador, vindas de todas as partes da teoria do conheci-
grafia e outra. Essas diferenças na historiografia mostram que a civilização mento, todas elas muito consistentes e interessantes, apresento as quatro
ocidental mudou mais uma vez. O centro da mudança está em sua con- saídas oferecidas pelos teóricos que defendem a história contra o pirro-
cepção de "história universal" e de "sentido histórico", ou seja, em sua auto- nismo que sempre a sitiou: o "modelo nomológico", defendido por Cari
10 J (J S E C A R L O S R. F l
Hempel; o "modelo compreensivo", em suas versões intuitiva, de Wil- história em relação às expectativas naturalistas de um conhecimento ob-
helm Dilthey, e racional, de Max Weber; o "modelo conceituai", de Max jecivo e seguro. A questão da temporalidade c tratada neste capítulo em
Weber e Paul Veyne, e o "modelo narrativo", de Paul Ricoeur. Nenhum três autores acuais e fundamentais: Ricoeur, Koseileck e Braudel. São três
desses modelos revelou-se incontestável, um porto realmente seguro para leituras extremamente sohsticadas do cernpo histórico, que procuro ao
o conhecimento histórico. Todos eles são fustigados pelo ceticismo em re- mesmo tempo diferenciar, distanciar e articular. A pergunta do capítulo é:
lação ao conhecimento histórico e se mantêm em pé com dificuldade. O o que é e como se formula o problema da temporalidade histórica?
que os salva é a circularidade virtuosa que os prende uns aos outros: a crise Chega-se, então, ao sexto e último capítulo, "Dilthey e o histori-
do modelo nomológico leva ao modelo compreensivo, cuja crise leva ao cismo, a redescoberta da história" — autor e "escola" que decidiram acei-
modelo conceituai, cuja crise leva ao modelo narrativo, cuja crise nos leva tar a temporalidade e todos os seus riscos epistemológicos; autor e "escola"
de volta ao modelo nomológico. A pergunta do capítulo é: qual dos mo- que talvez possam ser apresentados como os mais próximos da nossa po-
delos de conhecimento histórico poderia resolver melhor as suas aporias? sição atual em relação às discussões sobre a teoria da história. Este capítulo
O quarto capítulo, "História e verdade: posições", foi publicado talvez possa ser lido como uma plausível e provisória conclusão para as
em 2000, no número 89 do volume 27 da importante revista dos jesuítas discussões esboçadas nos capítulos anteriores. Dilthey não vem sozinho.
Síntese, Revista de Filosofia. Nele, retomo algumas das objeções ao conhe- Junto com ele, precedendo-o, Viço; seguindo-o, toda a coorte de exegetas,
cimento histórico já expostas no capítulo anterior e considero várias res- hermeneutas e intérpretes dos séculos XIX e XX: Heidegger, Weber, Jaspers,
postas ao problema da verdade histórica, oferecidas pelos mais reconhe- E. Cassirer, Troeltsch, Scheller, Simmel, Mannheim, Gramsci, Aron,
cidos e recentes historiadores e filósofos da história. Meu objetivo é criar Lõwith, Lukács, Spranger, Sartre, Gadamer, Habermas, Rjcoeur e muitos
um poliedro de posições sobre a verdade, para fazer do problema um outros. Poucos foram tão originais como Dilthey em epistemologia das ciên-
exame ao mesmo tempo teórico e histórico. As faces desse poliedro são cias humanas. A sua obra está na base de todo o pensamento fenomenoló-
Ranke, Weber, Marx, Ricoeur, Marrou, Foucault, De Certeau, Duby e gico, existencialista, hermenêutico, de grande parte das teorias da história,
Koselleck. Esses autores são chamados a testemunhar, uns como "realis- da literatura, da pedagogia, da psicologia e da antropologia do século XX. O
tas", outros como "nominalistas", sobre a verdade histórica. O resultado seu interesse pelo fenómeno cultural, a sua discussão sobre os valores e a
é uma tensão tão rica que ameaça explodir as paredes do poliedro, tor- ênfase na individualidade estão na base de toda radical "teoria crítica" da
nando impossível qualquer figura reconhecível do problema da verdade sociedade, como, por exemplo, a da Escola de Frankfurt e a dos diversos
histórica. Mas a explosão não ocorre: na divergência acirrada e agudizada, marxismos culturalistas.
surge o desenho de uma figura, a proposição de uma ideia cheia e densa Dilthey temporalizou os estudos históricos, valorizou a experiên-
sobre a questão. A pergunta do capítulo é: apesar de se chegar a posições cia humana no tempo, procurando a vida lá onde, quando e como se ma-
tão díspares, pode-se falar em verdade em história?
nifestava. Seu tema era o da historicidade, o da experiência vivida e o da
Isso nos leva ao quinto capítulo, "O conceito de tempo histórico busca de uma experiência humana feliz. Talvez, por ter sido tão original,
em Ricoeur, Koselleck e nosAnnales: uma articulação possível", um artigo Dilthey tenha sido tão mal compreendido! Ele foi um homem de grandes
escrito em 1996 para o número 73 do volume 23 da mesma revista dos je- intuiçóes e não um construtor de análises abstratas. Para a tradição car-
suítas, quando esta ainda tinha o título Síntese Nova Fase. As objeções à tesiana, iluminista e positivista, ele estaria na contramão da Razão. Em seu
história do capítulo 3, a crispação do capítulo 4, a mudança na historio- pensamento aparece uma personalidade intuitiva, poética. Ele represen-
grafia nos capítulos l e 2 foram geradas por um problema central, fun- taria uma perigosa porta aberta ao irracionalismo. Ele é posto, aqui, como
damental, para a teoria da história: a temporalidade. O tempo é respon- a referência central de uma orientação mais ampla da teoria da história: o
sável pelas dificuldades cognitivas e, de outra ordem, da história. Ou não inefável historicismo. Aos problemas postos anteriormente, Dilthey ofe-
seriam "dificuldades cognitivas", mas riqueza, especificidade, diferença da receu uma densa reflexão e sugeriu caminhos fecundos, seguidos pelos
r
12
13
melhores teóricos da história do século XX. Neste capítulo, parcialmente
veicula um mundo cultural compartilhado por ele e pelo leitor. Para Ri-
publicado em 2002, no número l do volume 8 da revista Locus, do De-
coeur. a obra hiitórica produz, faz circular, renova e transmite cultura. E
partamento de História da UFJF, discuto as consequências da Revolução
este texto tem precisamente esse objetivo: fazer circular, renovar, estimular
Francesa para o conhecimento histórico e ao mesmo tempo examino e
e transmitir cultura. Ele deseja, ser e promover uma recriação do mundo
aceito a proposta historicista, se é que há um conceito para historicismo.
e dos seus sentidos.
Tento defini-lo e apresento Wilhelm Dilthey como um dos autores cen-
Finalmente, uma palavra de agradecimento. Como disse, estes es-
trais para a teoria da história contemporânea.
tudos foram produzidos ao longo da minha carreira académica. Gostaria de
dedicá-los a todos aqueles, professores, colegas, alunos, universidades, edi-
toras, revistas, jornais, críticos, pareceristas, que pavimentaram de alguma
forma esta minha estrada. Sou profundamente grato aos meus orientadores
E chegamos ao "mundo do leitor". Esta rápida apresentação do do mestrado e do doutorado, professores Ivan Domingues (UFMG) e
livro dirige-se ao amável leitor, não para limitar sua'leitura ou indicar-lhe André Berten (Université Catholique de Louvam, Bélgica); agradeço ao
o modo de manipulá-lo. A obra continua aberta. Não ignoro que o livro professor André Burguière, por sua atenciosa interlocução no pós-doutora-
que tem em mãos lhe pertence e não pretendo lhe mostrar como deve lê- do, na École dês Hautes Études en Sciences Social es. Agradeço à Capes,
lo. Ele é seu, por dentro e por fora e, portanto, traçará nele o seu próprio pelas bolsas de mestrado e doutorado, e ao CNPq, pela bolsa de pós-dou-
itinerário. Como autor, entrego-o à sua "filtragem" (Ginsburg), à sua torado, além da rara bolsa de produtividade em pesquisa, que é preciosa,
"apropriação" (Charder), à sua "refiguração" (Ricoeur). Mas, como autor, nestes tempos difíceis para os professores da universidade pública brasileira.
me inquieto: com que disposição de espírito esse misterioso leitor receberá Agradeço aos meus ex-alunos, especialmente àqueles que foram simpáticos
esses "mal-escritos sobre a história"? E me tranquilizo e me animo: não e competentes interlocutores. Quanto às tais pedras no meio do caminho...
importa, pois é preciso haver leitores, porque sem eles não há obra. A nar- Ora, como diria Voltaire, que continuem constipadas!
ração, para Ricoeur, só assume um sentido pleno quando é restituída ao
tempo do agir e do sentir. O autor entrega ao leitor as suas elucubrações
com a esperança de que a cada leitura, modificadas, as suas ideias renas-
çam, ganhem um novo sopro de vida. O texto só se torna uma obra quan-
do chega ao leitor, que o recria. A escrita é só um esboço para a leitura. O
texto é cheio de vazios, descontinuidades. O leitor é co-autor. É ao re-
ceptor que a narração ensina o universal. O leitor recebe o texto segundo
as suas categorias culturais. Há paradigmas que sustentam a sua espera. E
ele quem lê e segue uma história. Espero que este texto ofereça ao leitor
virtual o prazer do reconhecimento, algum prazer do texto, que sofra a ca-
tarse e reconstrua, com mais competência e desenvoltura, as ideias e emo-
ções que este texto articula. A catarse une cognição, imaginação e senti-
mento. Essa catarse pode ser esperada pelo autor, porque o seu texto
* O leitor interessado em saber algo mais acerca de meus estudos sobre Wilhelm Dilthey
pode ler REIS, J. C. Wilhelm Dilthey e a autonomia das ciências histórico-sociais. Londrina:
Eduel, 2003.
r
CAPÍTULO l
História da história: civilização ocidental
e sentido histórico
Metafísica e história
Ao longo do último milénio, os historiadores ocidentais manifes-
taram preocupação constante com o destino de uma "humanidade uni-
versal". Aterrorizados com as experiências cada vez mais frequentes e bru-
tais de guerras e invasões, injustiças sociais, epidemias, fomes, catástrofes
naturais, interrogaram-se obsessivamente sobre a história universal, sobre
o seu sentido, sobre o dever ser da humanidade, sobre a perfectibilidade
humana, que poderia se realizar na história. Perguntas metafísicas orien-
taram as reflexões e pesquisas históricas no Ocidente: "quem somos?",
"para onde vamos?", "para que viemos e qual será o nosso destino?",
"como obter a salvação?". Essas perguntas revelam uma angústia funda-
mental, a experiência de um permanente mal-estar de ser-no-tempo. O
Ocidente sofre com a própria ausência e procura construir uma imagem
global, reconhecível e aceitável, de si mesmo. A cultura ocidental se in-
terroga sobre a sua identidade, que generaliza como problema do homem
universal. Esse esforço obsessivo para atribuir um sentido inteligível, uni-
versal, à "vida humana" se explica pelo fato de a cultura ocidental não pos-
suir uma identidade sem fissuras e de precisar justificar seu expansionismo
pelo mundo. Ela se esforça para se integrar, luta para se reconhecer em sua
totalidade, para poder se expandir com a legitimação de um discurso claro
e distinto, irretorquível.
16
J o s f CARIO- 17
Este capítulo pretende contribuir com uma reflexão crítica sobre
interessavam pelo imutável, perceptível na ordem fixa dos corpos celestes.
esse esforço ocidental, procurando reconstruir o percurso da sua problemá-
A mudança não poderia levar ao ser, pois um ser que muda já não é. O
tica — a das relações entre a "ideia de história universal e de sentido his-
ser-que-é é alheio à mudança, imutável, estável, permanente, sempre pre-
tórico". Ao refazer a história dessa história, tem por objetivo produzir o le-
sente. Eles procuravam reconhecer nas mudanças humanas uma "natureza
vantamento e as articulações entre as diversas representações da vida e do
humana", que passa por ciclos, mas é permanente aos olhos da razão. O
seu sentido ao longo da história do Ocidente. Trata-se de uma "síntese au-
futuro teria os mesmos eventos do passado e os homens teriam sempre as
tocrítica" da cultura ocidental, uma forma de busca da identidade, que pro-
mesmas pulsões e necessidades. A vida humana se move em repetições,
cura percorrer, reconstruir, elaborar, integrar e autocriticar as experiências
como o sol, as estações. Os gregos tinham uma visão cíclica e repetitiva da
vividas de modo disperso e desarticulado. A história tem um papel primor-
história: crescimento e decadência, vida e morte. A ordem que existe no
dial nessa busca ocidental de auto-integração e auto-reconhecimento.
universo, acessível ao pensamento, não revela uma sucessão linear e teleo-
A fragmentação da identidade ocidental começou com os gregos, lógica, mas a estabilidade do ser. Pela contemplação e pelo discurso, es-
que, ao mesmo tempo, tinham uma cultura anti-histórica e inventaram a tabeleciam a ordem racional do cosmo. A mudança não podia ser tema da
história. Eles já oscilavam entre o sagrado e o profano, entre a eternidade filosofia. A mudança seria da ordem do irracional, incognoscível, incom-
e o tempo, com forte atração pelo profano e pelo tempo. Era estranha aos patível com um pensamento que buscasse a verdade. A mudança é "for-
criadores da história essa ideia abstrata e genérica de uma "humanidade tuna", "acaso", "contingência", "sorte-azar", "vicissitude". Pode-se mudar da
universal". Esta não foi construída pelos gregos, os fundadores da cultura riqueza para a pobreza, da vitória para a derrota, da escravidão para a li-
ocidental. Os historiadores gregos não pretenderam revelar o destino da berdade e vice-versa. A mudança deve ser encarada virilmente, sabiamen-
humanidade. Eles criaram um conhecimento dos homens estranho a toda te. Na hora do triunfo, pensar na derrota. Deve-se aprender com a des-
ideia de evolução, progresso, restringindo-se ao registro e à interpretação graça e ser moderado na prosperidade. O sentido não era procurado na
das ações humanas de alcance limitado, apoiados em documentos visuais mudança, na história, como o faria o historiador ocidental posterior. A
e orais (só quem presenciava o evento podia relatá-lo de modo confiável). história, que então nascia, não gozava de nenhum apreço filosófico. Uma
Sua história apenas ensinava, em relação ao futuro, a necessidade da me- "filosofia da história" seria um contra-senso. Diante da mudança histó-
mória, da prudência, da cautela, da resignação. Eles não tinham uma ideia rica, os homens deveriam apenas encará-la com coragem e serenidade. O
da unidade e da solidariedade da espécie humana. A vida grega era frag- filósofo, que queria ser feliz, só tinha uma esperança: abandonar a história,
mentada em pequenos todos, divididos e em guerra. Suas especulações tornar-se uma ideia eterna e jamais retornar ao tempo.
sobre o fim último da vida humana eram sóbrias. Não esperavam que, no
Os gregos se interessavam pelo eterno, pelo que não precisa da his-
final, a história pudesse trazer a felicidade humana. O historiador só podia
tória para ser. Seus historiadores, ao fundarem a história, desafiaram a pró-
oferecer aos homens a felicidade individual, atribuindo a eles uma repu-
pria cultura anti-histórica. A história que fundaram não se interessava pelo
tação de heróis, a fama eterna, a lembrança do seu nome e dos seus feitos.
futuro, apenas pelo presente e pelo passado. Eles não se perguntavam "o que
Contudo, apesar de sua nova ciência — a história —, eles também
fazer?", questão que indica o futuro, mas "o que aconteceu?", questão que
procuraram dar um sentido metafísico ao mundo. E o procuraram na
aponta para o passado, que preferiam recente. Não se interessavam histori-
contemplação da ordem e da beleza estáveis do universo. Os gregos não
camente pelo futuro como "humanização", nem pelo longínquo passado,
buscavam o sentido do ser na história. Para pensarem o cosmo, faziam
que tratavam miticamente. Acreditavam que o futuro individual já estava
abstração da história, que, para eles, era o lugar sublunar da mudança, da
dado e podia ser antevisto pelos oráculos. Os homens do futuro não seriam
desordem. Aboliam o tempo, submetendo o universo a uma explicação
melhores do que os passados e os atuais. Os oráculos tinham o dom de ver
natural e racional, o logos, a ordem, que a mudança esconde. Seu olhar
a vida predestinada dos indivíduos que as musas lhes sopravam. Estas co-
sobre o mundo buscava a perfeição do movimento circular. Os gregos se
nheciam tudo: o passado e o futuro. Os eventos presentes e passados tinham